O Jesus da Bíblia e a menina que aprendeu com Bolsonaro o gesto de disparar um revólver
Seria triste se o Brasil se tornasse hoje exportador de uma nova maneira de se divertir na infância: brincar de matar
Entre os símbolos da liturgia da morte adotada pelo militar de extrema direita brasileiro, Jair Bolsonaro, candidato à presidência da República, figura agora também a imagem de uma menina de cerca de quatro anos imitando com os dedos polegar e indicador de sua mão direita o gesto de disparar um revólver. Foi ele quem lhe ensinou enquanto a segurava nos braços, rindo entretido.
Questionados sobre a cena que horrorizou não poucos, os assessores de Bolsonaro explicaram que podia ser interpretada como um “gesto cristão” de bravura. Que eu saiba, e estudei os evangelhos durante anos, o único símbolo de violência no cristianismo é o de Cristo na cruz, um inocente condenado à morte. O restante da simbologia dos seguidores do Nazareno é impregnado de paz e perdão, não de violência ou vingança.
Foi Jesus que, em diversas ocasiões, propôs uma criança como símbolo do Reino de Deus. Ele considerava tão grave qualquer tipo de violência contra a infância que chegou a pedir pena de morte para quem ofendesse uma criança: “melhor fora que lhe atassem ao pescoço a pedra de um moinho e o lançassem no fundo do mar” (Mt.18,5ss). A dura condenação do Mestre a quem ofendesse uma criança deve ter impressionado tanto aos seus discípulos que essa passagem aparece nos três evangelhos sinóticos considerados os mais antigos e próximos da sua morte.
Jesus, o manso, o compassivo, o que pedia perdão para todos os pecados, diz que não merece viver quem exerce violência com uma criança. Os evangelhos não dizem a que violência se referia. Há quem pense em uma violência sexual, mas existem muitas formas de ofender um pequeno. Uma delas é usar suas mãos ainda inocentes, que estão aprendendo a acariciar e a brincar, a escrever e a alimentar-se, para imitar o gesto de uma arma que evoca ecos de morte.
Escrevi nesta mesma coluna por que a candidatura do extremista e violento ex-paraquedista Bolsonaro “me dava arrepios”. Hoje, àquele medo tenho que acrescentar o de que o gesto ensinado à menina vire moda, já que durante a liturgia da consagração de Bolsonaro como candidato à presidência corriam pela sala outras crianças imitando o gesto de imitar um revólver com as mãos.
Seria triste se o Brasil, que conquistou o mundo com sua festividade e com a riqueza da sua miscigenação, sua música e sua alegria, se tornasse hoje exportador de uma nova maneira de se divertir na infância: brincar de matar. As crianças devem ser cercadas, desde que nascem, frágeis e indefesas, de gestos de amor e respeito pelos demais, de símbolos que evoquem a vida e não a morte. Terão tempo de sobra para aprender que o mundo está infestado pelos ventos da violência e da intolerância, do desprezo pelas diferenças, do medo das liberdades. Deixemos, agora, que usem as mãos para brincar com a vida. Jesus as usava não para matar, mas para ressuscitar os mortos, devolver a visão aos cegos e fazer os paralíticos voltarem a andar.
O Jesus que sempre cantou a vida e não a morte não gostava de armas. Quando os soldados foram prendê-lo no Horto das Oliveiras, um dos apóstolos desembainhou a espada em sua defesa. Jesus o repreendeu: “Embainha tua espada, porque todos aqueles que usarem da espada, pela espada morrerão” (Mt 26,31ss).
Na mesma manhã em que os jornais me horrorizaram com a foto de Bolsonaro rindo com a menina nos braços aprendendo a disparar uma pistola, veio me visitar a pequena Maria Luisa, uma neta por afinidade que deve ter a mesma idade da menina da foto. Brincando no jardim, a pequena me perguntou se podia colher uma flor para dar a sua mãe. Colheu-a e, quando a deu para a mãe, esta a abraçou e beijou suas mãos.
Que nossos pequenos possam povoar seus sonhos não com gestos de morte, nem com símbolos de guerra, mas de arco-íris de paz, de luz de girassóis. Que sonhem tendo nas mãos não o sabor da pólvora, mas o dos beijos daqueles que as amam.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.