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A ferida emocional deixada pelas cesáreas

Uma cesárea, como qualquer intervenção cirúrgica, envolve certos riscos para a mãe e para a criança, tanto no aspecto físico, como no emocional

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Em 2015, dos 3 milhões de partos feitos no Brasil, 55,5% foram cesáreas, segundo o Ministério da Saúde. Um  número muito distante da taxa “ideal” de cesarianas definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que está entre 10% e 15%. No mesmo período, a taxa dos nascimentos ocorridos na Espanha também foi acima da recomendada: 26,66%, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Além disso, segundo Elena Gil, assessora de imprensa da associação El parto es nuestro (O parto é nosso), há uma grande variação entre hospitais, comunidades autônomas e maternidades públicas (geralmente menos de 30%) e privadas (mais de 50%). “De acordo com a estimativa mais alta da OMS, 11% das cesarianas foram feitas sem necessidade. Isso se traduz em 49.000 mulheres e bebês na Espanha submetidos a uma grande cirurgia sem justificativa médica”, diz Gil. A associação vem trabalhando há anos para aumentar a conscientização sobre o uso deste tipo de intervenção apenas quando é realmente necessário. Embora acreditem que a situação tenha melhorado, especialmente na saúde pública, “onde, de fato, parece haver um esforço para reduzir as taxas de cesariana”, os dados atuais apontam para um ligeiro crescimento devido, intuem, ao aumento de induções.

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A primeira cesariana de Almudena foi resultado de uma “indução ruim”, como confirmaram depois de passar por vários ginecologistas e parteiras que consultou para pedir uma opinião em sua segunda gravidez. “Eu estava muito ‘verde’. Me induziram o parto só porque estava com 41 semanas. Começaram direto com ocitocina, sem usar primeiro prostangladinas para preparar o colo do útero, e me disseram que se eu sentisse desconforto, aplicariam a [anestesia] epidural. Achei perfeito, mas depois de quatro horas entubada, como [a dilatação] não passava de dois centímetros, me disseram que o parto não progrediu e que iam fazer uma cesariana; sem respeitar os tempos e na ausência de sofrimento fetal. Foi uma cesariana sem emergência e apesar disso foi uma barbeiragem, segundo o cirurgião que me atendeu da segunda vez. Se hoje eu chegar a essa situação, sei que não vou passar por isso outra vez”. Aquela cesariana que Almudena define como “desne-cesárea” foi seguida por uma segunda cesariana que a reconciliou com essas intervenções, e por uma terceira, programada e aceita, que fechou parcialmente a ferida emocional que ainda carregava por causa da primeira experiência. “No meu caso é um espinho que vai ficar comigo para sempre, porque eu sonhava com um parto normal”, diz ela.

As sequelas emocionais de uma cesariana

Uma cesárea, como qualquer intervenção cirúrgica, envolve certos riscos para a mãe e para a criança, tanto no aspecto físico, como no emocional. De acordo com a psicóloga Patricia Roncallo, especializada em maternidade, as reações emocionais das mulheres à cesariana podem incluir uma ampla gama de sentimentos que variam e se transformam com o tempo: “Enquanto algumas mulheres podem expressar tranquilidade ou gratidão, outras podem ter uma experiência enormemente angustiante e sentir uma grande tristeza ou até apresentar sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. Algumas mães podem sentir desconhecimento em relação ao bebê e outras podem não perceber a intervenção como algo significativo, até engravidarem outra vez e se aproximar o dia do parto”.

Gloria Gil, mãe de dois filhos, sabe disso. Seu primeiro parto terminou em uma cesariana devido ao “sofrimento fetal” após a tentativa de acelerar o processo no hospital. “Cheguei ao hospital sem estar em trabalho de parto, mas me deixaram na sala de partos porque não havia leitos disponíveis. A parteira me avisou que “ia demorar” e me incentivou a pôr a epidural, que eu aceitei, embora não quisesse. Como o parto avançava lentamente, romperam a bolsa para acelerar, mas viram que os sinais do bebê estavam baixando, pensaram que podia estar enrolado no cordão umbilical e, então, me levaram para a sala de cirurgia”, diz Gloria, que não esquece o momento em que começaram a cortar com o bisturi antes de a epidural fazer efeito, nem de como se sentiu “vazia” quando acordou. “Não sabia onde meu filho estava e só o vi 24 horas depois. Tive um pós-parto com episódios de estresse pós-traumático e dificuldades com a lactância, que consegui resolver porque me empenhei muito”, lamenta.

“Enquanto algumas mulheres podem expressar tranquilidade ou gratidão, outras podem ter uma experiência enormemente angustiante e sentir uma grande tristeza ou até apresentar sintomas de transtorno de estresse pós-traumático”

Uma das principais queixas de mulheres que passaram por cesariana e procuram a associação El Parto es Nuestro é a separação de seus bebês por várias horas, muitas vezes é acompanhada de uma total falta de informações sobre o estado dos recém-nascidos. Isso, para Elena Gil, torna a experiência muito traumática, além de dificultar o estabelecimento do vínculo e o início da lactação. A associação denuncia que algumas mulheres são amarradas ou têm ambos os braços imobilizados, algo que consideram “uma prática sem justificativa, violenta e que impede a mãe de segurar a criança”.

E muitas vezes não é por onde se nasce, mas como. O filho mais velho de Nerea Zambrano nasceu em uma cesariana programada para a 38ª semana porque estava de nádegas. A cirurgia foi realizada sem a presença do marido, e ela não se esquece da sensação de ter de ficar de braços cruzados e não poder segurar o filho quando ele nasceu. “Eu não pude senti-lo sobre a minha pele e, apesar de ter corrido tudo bem, fiquei mais de duas horas em uma sala de reanimação (para o caso de surgirem complicações, por puro protocolo). Perdi as primeiras horas de vida do meu filho e, apesar de estar bem fisicamente, emocionalmente eu sempre senti que tinha um espinho que só desapareceu com o nascimento da minha segunda filha em um parto vaginal belo e muito criterioso”.

Outro caso semelhante é o de Eulàlia M. Carbonell, que afirma que, apesar de seu ginecologista ter se esforçado muito para que não fosse assim, a cesariana foi algo frio: “Não deixaram meu marido entrar, amarraram minhas mãos e só pude ver minha filha por alguns segundos e dar-lhe um beijo antes de a levarem. Demorou quase três horas para vê-la de novo, até que minhas pernas acordaram e me subiram para o quarto onde ela me esperava com o pai”. Embora seja verdade que os protocolos de ação e boas práticas influenciarão a experiência, também as expectativas em relação ao parto. Para Eulàlia, a cesariana significou viver a maternidade, mesmo antes do nascimento de sua filha, com um profundo sentimento de culpa e frustração: “Que tipo de mãe seria para minha filha se eu não fosse nem capaz de trazê-la ao mundo?”, começou a se perguntar na 38ª semana, quando lhe disseram que a filha estava em apresentação podálica e tinha muito pouca chance de girar porque “era muito grande e tinha pouco líquido”. Meses após o nascimento de seu bebê, ela entendeu que não é “menos mãe” porque deu à luz por cesariana e aprendeu a se perdoar por pensar assim. O parto vaginal de sua segunda filha acabou curando suas feridas.

Como é uma cesariana criteriosa? Para Elena Gil, em primeiro lugar, deve ser justificada por razões médicas e a mulher deve ser informada sobre essas razões, bem como sobre as alternativas, se houver, e dar seu consentimento. “Exceto por motivos de força maior, a mulher deve estar consciente, acompanhada da pessoa que escolher, e não deve ser separada do bebê em nenhum momento. O início da amamentação deve ser facilitado imediatamente. Essas premissas fazem com que a mulher viva a intervenção de forma menos traumática, favorecem a criação do vínculo com o bebê e tornam muito mais provável o estabelecimento de uma lactação bem-sucedida”.

Em sua terceira gravidez, Almudena tentaria novamente o parto vaginal com total apoio de sua ginecologista, mas os resultados de alguns exames acabaram levando a uma cesariana programada. “Foi totalmente criteriosa e tranquila. Fez muita diferença conhecer a equipe médica, desde a ginecologista, até a enfermeira, a parteira e o anestesista, que foi o mesmo da minha segunda cesariana e me lembrava dele com muito carinho, porque sempre se dispôs a me deixar ficar com meu bebê enquanto terminavam de me costurar para que eu não perdesse essas duas horas sagradas. E, especialmente, tinha na cabeça a frase que me disse uma parteira: “‘Mesmo que você não tenha o parto com que sonhou, as circunstâncias podem ir mudando. Seja flexível, não deixe de desfrutar do que vier, porque essa criança só vai nascer uma vez’. E foi o que fiz”, lembra ela.

A cesariana envolve a perda de parto fisiológico como a mãe poderia ter imaginado, mas para a psicóloga Patricia Roncallo também pode envolver a “vulnerabilidade em que a mergulha a ausência do companheiro, a separação precoce do bebê, não iniciar a amamentação espontaneamente e uma recuperação lenta e dolorosa que pode dificultar o cuidado do bebê”. Para a especialista, é importante saber que, quando uma mulher sente ou percebe que sua experiência com a cesariana não foi boa, deve avaliar até que ponto essa vivência afeta seu dia-a-dia, sua saúde emocional e sua relação com o bebê e, se for o caso, buscar o apoio necessário.

Romper o silencio do pós-parto

Há um enorme silêncio em relação ao pós-parto que faz com que muitas mulheres vivam essa etapa vital com certa solidão, mal-estar e incompreensão. Patricia Roncallo diz que o sofrimento de uma mãe durante o pós-parto pode ser desatendido, minimizado e eclipsado pela chegada do bebê. “É frequente que familiares e amigos não perguntem à mulher nada além de sua recuperação física, espera-se que esteja feliz e plena e é cercada de frases feitas que podem ser muito dolorosas como ‘o importante é que seu bebê é saudável’. É preciso levar em consideração que enquanto o silêncio cresce, a solidão e a dor emocional também o fazem”, afirma.

“Exceto por motivos de força maior, a mulher deve estar consciente, acompanhada da pessoa que escolher, e não deve ser separada do bebê em nenhum momento. O início da amamentação deve ser facilitado imediatamente”

Nerea Zambrano lembra o pós-parto após a cesárea como um pesadelo, especialmente pelos comentários ao redor dela e a quantidade de visitas que recebeu (“Precisava me recuperar e da intimidade de minha casa e não foi possível. Não me senti realmente bem até três meses após parir”). Admite que, se um pós-parto após um nascimento vaginal já é difícil, no caso da cesárea é preciso levar em consideração a recuperação da mãe, que em muitos casos é longa e complicada, de modo que encoraja as mães que estão passando por esse tipo de pós-parto que peçam ajuda e apoio, tanto aos familiares e pessoas próximas como aos profissionais da saúde. “O trabalho das parteiras não acaba após o parto, também estão aí para acompanhar o puerpério”, diz.

No Parto é Nosso contam com uma lista de apoio e informação chamada Apoyocesáreas, embrião da associação, e que consiste em uma lista de e-mails em que as interessadas podem se inscrever e em que podem compartilhar suas experiências. “Existem histórias de cesáreas traumáticas, mas também de partos vaginais após essas cesáreas, depoimentos de superação e muita empatia e apoio”, diz o assessor de imprensa do grupo.

Ler sobre outras experiências de mulheres que passaram pelo mesmo que elas ajudou muito Gloria e Almudena. A psicóloga Patricia Roncallo acha que participar de um grupo de apoio, virtual ou presencial, pode ser de grande utilidade à mãe. Acrescenta que, em função de suas necessidades, pode ser útil procurar um psicólogo perinatal para integrar a experiência. “O trabalho psicoterapêutico pode ser orientado ao cuidado e fortalecimento da relação mãe-bebê, a processar a experiência, a nomear todas as emoções que frequentemente incluem sentimentos de culpa e raiva intensa e a elaborar as dores e perdas que acarretaram”, afirma.

“Os bebês de cesárea nascem mais bonitos”; “O importante é que você está bem”; “Você não sofreu as dores do parto”; “Uma cesárea é a melhor opção”; “Que bobagem, se os médicos falam é por alguma razão”; “Não é para tanto, muitas mulheres passam por isso”; “O importante é que vocês estão vivos”. São algumas das frases que as entrevistadas escutaram e consideram infelizes. “Cada pessoa tem o direito a expressar o que sente tal como o sente, a tirar de dentro de si. Não é preciso dizer nada, somente abraçar e acompanhar. É simples assim”, conclui Almudena

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