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Coluna
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O Brasil que escreve sua história com sangue de crianças

Já são oito crianças e adolescentes mortos no Rio só neste ano, por disparos aleatórios. Marcos Vinicius, de 14, do Complexo da Maré, foi alvejado pelas costas por um blindado da PM.

Carla Jiménez
Velório de Marcus Vinicius, de 14 anos, morto na Maré
Velório de Marcus Vinicius, de 14 anos, morto na MaréM.Pimentel (AFP)

Há algo que despedaça dentro da gente quando uma criança morre, e uma mãe precisa enterrá-lo. Mas a dor é incalculável (ou deveria) quando se sabe que o pequeno ou a pequena são indefesos alvejados brutalmente por obra de uma política de segurança assassina que cobiça ainda mais poder para matar inadvertidamente. “Ele não meu viu com a roupa de escola, mãe?”, disse Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, enquanto sangrava pela barriga, pela bala que o atravessou vindo de um blindado da polícia. Vinicius recebeu o tiro pelas costas. Definhou nos braços da mãe, Bruna. Uma doméstica, parda, do Complexo da Maré, no Rio. Seguiu até o hospital, depois de esperar uma hora pela ambulância. Não resistiu.

O país que se solidarizava na última quinta com as fotos de crianças chorando, separadas dos pais sob a política insensível de Donald Trump para os imigrantes nos EUA, não percebia que mais uma criança brasileira também era apartada, para sempre, dos seus. Assassinada, vítima impotente da indiferença geral. Do Governo brasileiro, que fomenta uma política violenta, classista e mambembe de segurança pública, e a indiferença de uma enorme parcela da população que finge não enxergar esse massacre.

Como não sentir revolta contra este sistema apodrecido? Ninguém teme o que vem depois? A situação é grave, gravíssima, não só pela morte de mais um adolescente. Só neste ano foram oito crianças vítimas de balas perdidas, como levantou o jornal O Dia, sendo duas delas de apenas dois anos. No mesmo dia em que Marcos morreu, Guilherme Henrique, também de 14, foi vítima de balas disparadas de um veículo no Realengo, zona Norte do Rio. Também estava de uniforme escolar. Queria ser engenheiro. Um menino estudioso, que não saía de casa, segundo seu pai, Roberto. A trágica realidade é a quantidade de mártires mirins que este país multiplica ano a ano. Em março do ano passado, foi Maria Eduarda, de 13 anos, assassinada dentro da escola, na Zona Norte do Rio. No final de 2015, cinco jovens covardemente mortos com 50 tiros de fuzil.

É inacreditável que o Brasil continue escrevendo sua história violenta de desigualdade com sangue de crianças e adolescentes. E que uma parte da população dê de ombros para estas notícias, querendo eleger um candidato a presidente que quer mais sangue ainda com a liberação de armas e autorização para que a polícia mate sem ser questionada. Jair Bolsonaro postou na sexta-feira em seu twitter um elogio à polícia militar do Rio de Janeiro com cenas de pessoas sendo presas, enquanto Bruna ainda devia ouvir as últimas frases do seu filho “era um blindado” – antes de morrer. Nenhuma palavra sobre Vinicius e Guilherme Henrique que morreram em sua cidade. Bolsonaro ainda anunciou, no mesmo dia, que não vai a debates nas eleições para explicar suas propostas que reforçam e pioram as diretrizes para esta masmorra humana a céu aberto.

Marcos Vinicius ia para a escola quando recebeu o tiro. Ia tentar furar o bloqueio da desgraçada pobreza deste país, que precisa de nove gerações para que alguém supere sua condição de sobrevivência financeira. Isso, se não morrer assassinado antes por ter nascido com o ‘erro’ de origem de vir ao mundo em uma família simples. A foto dos amigos dele segurando sua camiseta ensanguentada é para ser esfregada na nossa memória. No mesmo dia de seu assassinato, uma manchete da Folha contava que o Governo fazia planos de tirar recursos que seriam destinados ao Fundo de financiamento estudantil (FIES) para repassar à segurança. Até quando vamos ter de escrever textos e mais textos para falar o óbvio, repetir Darcy Ribeiro sobre as nações que não investem em escolas gastam mais dinheiro com presídio, e que, por favor, crianças morrerem assassinadas não é miopia, mas psicopatia social?

Marcos vivia na Favela da Maré. A mesma onde cresceu Marielle Franco, cuja execução sumária continua protegendo assassinos que se alimentam do sangue de pessoas como ela ou este novo mártir involuntário que não teve a chance de ver a vida além de seus 14 anos. Não viu a vitória da seleção. Não teve a oportunidade de terminar a escola, de sonhar além dessa breve existência. Seus colegas não foram à aula nesta sexta, temendo a presença de outros blindados. No ano passado, eles faltaram 38 vezes pelo mesmo motivo, segundo o jornal o Globo. É o risco de ser assassinado como estímulo para fraquejar na educação. A taxa de evasão escolar ali é de quase 20%, maior que a média nacional, ainda segundo o Globo.

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É uma dinâmica horrenda e interminável neste país, que finge alívio com uma intervenção militar no Rio de Janeiro e suas ridículas cifras que só mostraram aumento de mortes violentas e zero de solução. Bola cantada mil vezes pelos moradores de comunidades, e por todos os estudiosos da violência no Rio quando a intervenção foi anunciada. Marcos Vinicius entra nessa conta. De quem vamos cobrar o que não tem volta? Um Estado que não se importa com a morte de uma criança não é doente, como disse a admirável Bruna, mãe do adolescente, que dentro de sua incomensurável dor, logrou ser elegante para falar do assassino de seu anjo. Um Estado que mata insistentemente crianças e inocentes em franjas desassistidas como a do complexo da Maré é cruel, perverso, assassino.

Nunca o Brasil pediu tanta atenção para tratar a doença, esta sim, da sua indiferença com a morte de inocentes. Nunca foi tão necessário assumir o papel de civilizador com quem se nega a entender o óbvio, e pior, não entende que é conivente com esta chacina de menores.

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