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As cicatrizes abertas da última bolha imobiliária na Espanha

Uma década depois do estouro da crise, ainda perduram os efeitos do ‘boom’ anterior. Os especialistas advertem que não foram tomadas as medidas necessárias para evitar uma crise semelhante

Várias casas do que deveria ter sido um complexo de luxo em Villamayor de Calatrava.
Várias casas do que deveria ter sido um complexo de luxo em Villamayor de Calatrava.ALEJANDRO RUESGA
Eva Saiz

Da janela do AVE Madrid-Sevilla, às margens das rodovias A-41 e da Nacional 420, emergem, como um espectro, uma sucessão de residências inacabadas, cobertas pelo pó da meseta castelhana. São os esqueletos do que deveria ter sido o empreendimento Velbapark, um complexo de luxo conhecido como Marina D’Or de Castela-La Mancha, projetado nos anos noventa do auge da loucura urbanística, e que agora representa um paradigma dos despojos da febre imobiliária. O fantasma de uma nova bolha imobiliária paira novamente sobre o setor, mas os efeitos da anterior continuam latentes: os empreendimentos pela metade espalhados por toda a Espanha; as milhares de ações pendentes nos tribunais e de sentenças impossíveis de executar diante da insolvência dos condenados; e as famílias e construtores arruinados são exemplos da ressaca dessa embriaguez urbanística que ainda perduram. Os profissionais alertam que uma década depois do fim do boom, não foram tomadas as medidas para evitar crise semelhante.

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Amparado por dois megaprojetos —o aeroporto de Ciudad Real e o macrocomplexo de cassinos Reino de Dom Quixote— teve início a construção de Velbapark, um loteamento de cerca de 500 casas, com piscinas, campo de golfe e um hotel cinco estrelas com grandes recursos turísticos a oito quilômetros de Villamayor de Calatrava, uma vila de 600 habitantes de Ciudad Real. Esses planos naufragaram e com eles Velbapark: o que deveria ser um centro destinado ao lazer e ao prazer parece uma cidade do Velho Oeste, onde o silêncio só é interrompido pelo ruído do trem de alta velocidade. “Isso hoje está em stand-by. As instituições financeiras proprietárias do complexo não querem assumi-lo e acredito que estejam esperando que surja alguma oportunidade de negócio, que o aeroporto seja aberto ou que a situação econômica da região melhore”, explica Juan Callejas, prefeito popular de Villamayor de Calatrava. O projeto foi apresentado como um polo de crescimento econômico que beneficiaria a região, mas agora virou um problema. Os vizinhos de Villamayor temem que depois dos saques e pilhagens que ocorreram no complexo agora comecem a ocorrer ocupações. Callejas entrou em contato com entidades privadas e públicas para tentar encontrar um futuro para esse empreendimento fracassado, sem sucesso até agora. Este caso concreto não gerou processos, porque não se chegou a comprar um metro quadrado sequer: “Curiosamente, estava sendo construído, mas não foi vendido”, reconhece Callejas.

Juan Luis Macía, porém, chegou a comprar. Em 2010 decidiu investir com sua esposa, Sonia Jimenez, em um apartamento em Benimamet (Valência). Seu caso não difere do da maioria de afetados pelo final do boom. A compra era feita na planta e assinava-se um contrato com a obrigação de pagar parcelas por conta da futura moradia até sua entrega final e formalização da hipoteca. Eram os anos de bonança e o crédito fácil e rápido, para incorporadores, construtoras e compradores. Tudo mudou com o estouro da bolha: liquidação de sociedades, promoções paralisadas e mudanças na situação trabalhista em consequência da crise deram lugar a uma espiral maléfica: os compradores não receberiam mais suas casas e nem o dinheiro adiantado diante da falência ou fechamento da empresa construtora.

Tenho uma sentença muito bonita na qual um juiz me dá razão, mas só me serve para emoldurar e pendurar na parede. Ganhei, mas não vi o dinheiro."

Macía e Jiménez ofereceram 3.000 euros de entrada e depois pagaram 24 parcelas de 1.000 euros (no total, cerca de 110.000 reais). Todas as economias que tinham. O início das obras atrasou dois anos. “Nos pediram então 14.000 euros [cerca de 56.000 reais] a mais para que depois pudéssemos abater e demos”, explica. “A obra começou a avançar mais lentamente, não havia operários, a incorporadora nos enrolava... Em 2015 nos disseram que retomariam o trabalho, nos pedimos mais 10.000 euros [40.000 reais], demos, apesar de já sabermos que estavam rindo da nossa cara, mas tínhamos tanta vontade de ver nossa casa terminada que, se faltava dinheiro, dávamos.” No fim, a obra não terminou. Macía entrou na justiça para romper o contrato e ganhou, mas não conseguiu obter a devolução dos valores desembolsados porque o construtor se declarou insolvente. Agora continua na justiça com uma estratégica diferente, reclamando à entidade financeira avalista, segundo a Lei 57/1968, que ajudou muitos prejudicados a recuperar seus investimentos apesar da falência das incorporadoras.

Macía era dono de uma padaria quando decidiu comprar o apartamento e sua esposa, vendedora em uma loja de perfumes. Ele agora está insolvente porque seu negócio fechou com a crise, e ela continua no mesmo emprego. Têm de continuar morando de aluguel e abriram mão de ter a própria casa. “Estamos ferrados. Como demos tanto dinheiro entramos em um tipo de ruína financeira. Tenho uma sentença muito bonita na qual um juiz me dá razão, mas só me serve para emoldurar e pendurar na parede. Ganhei, mas não vi o dinheiro”, lamenta.

A primeira sensação é de raiva, impotência, porque simplesmente comprovar que seu apartamento foi vendido a outra pessoa e que o construtor está com o seu dinheiro já não tem importância."

Um destino semelhante, um quadro na parede, é o que seguiu à sentença de Carlos García Melchor. Diferentemente de Macía, a casa de García Melchor, do empreendimento Cristina Sur, em Pinto, chegou a ser construída. Ele pagou todas as parcelas, mas o atraso na construção fez com que pedisse a revogação do contrato. Um tribunal lhe deu razão, mas o construtor Santiago Lahoz se declarou insolvente. No entanto, revendeu este e os demais apartamentos de outros clientes que tinham pago boa parte do valor de suas residências. Agora, quando García Melchor toca o porteiro eletrônico do que dever ter sido sua casa se os prazos tivessem sido cumpridos, outra pessoa atende. “A primeira sensação é de raiva, impotência, porque simplesmente demonstrar que seu apartamento foi vendido a outra pessoa e que a construtora ficou com seu dinheiro já não importa mais”. García Melchor continua pleiteando, ao lado de 28 outros prejudicados, desde 2013. A Audiência Provincial de Madri se pronunciou a seu favor com uma sentença firme, mas o incorporador decretou falência. Agora com seu advogado estão verificando outras opções legais para tentar recuperar o dinheiro. Este jornal tentou contatar sem sucesso o construtor Santiago Lahoz.

Uma década depois do estouro da bolha imobiliária, não há dados quanto ao número de processos judiciais relacionados a pedidos de revogação de contratos de compra e venda de casas e apartamentos sem construir, como os casos de Macía e García Melchor, há pendentes ou resolvidos, nem quantos compradores ou construtores foram afetados pelo fim do boom, apesar de se tratar de um dos episódios mais penosos e evidentes da crise.

Revitalizar os loteamentos inacabados

Também não houve solução para retomar os empreendimentos cujos restos inacabados se espalham por toda a Espanha. O Escritório da Defensoria Pública aciona as Prefeituras no sentido de exigirem que os incorporadores conservem as obras e construções e sugerem que entrem com ações contra as garantias e avais oferecidos para garantir o empreendimento. Mas em várias ocasiões, como no caso de Villamayor de Calatrava e do complexo Velbapark, os prefeitos se veem de mãos atadas diante da impossibilidade de levar adiante projetos inacabados.

Os fundos de investimento que nos últimos anos revitalizaram o setor se interessaram por alguns desses complexos incompletos, sempre em regiões estratégicas. “Nesse tempo houve ativos desse tipo, empreendimentos inacabados, distritos industriais, por exemplo, na Costa do Sol, que foram adquiridas por esses fundos, concluídos e vendidos”, explica Daniel Cuervo, secretário geral da Associação de Incorporadores e Construtores da Espanha (APCE, na sigla em espanhol). “Onde se justifica, essas estruturas podem ser aproveitadas. A localização é muito importante e isso determina quais terão viabilidade e quais não. Também mudaram as necessidades e a demanda em relação ao que havia antes no mercado. A solução vai sendo encontrada ao longo do tempo, algumas vão terminar e outras acabarão sendo demolidas ou ficando como estão em função da recuperação das regiões em que se encontram. Dependemos da recuperação da demanda, do trabalho, do meio empresarial e do aspecto turístico, que também é importante”, explica.

Cuervo reconhece uma melhoria no setor, mas acredita que é cedo para falar em bolha. Todos os padrões da última crise continuam se repetindo, mas não foram tomadas as medidas administrativas ou legais para conter as consequências de outra avalanche urbanística. “A crise aconteceu há pouco e não aprendemos”, adverte Marta Serra, do escritório de advocacia Sala & Serra, especializado em reclamações cooperativas e cooperativistas de moradia. Ela lamenta que não tenha havido mais regulamentações nestes anos “para evitar que as pessoas sejam enganadas como aconteceu na última crise”. “Temos um problema na Espanha com as questões imobiliárias porque de tempos em tempos volta a haver uma crise e muitas famílias ficam sem seu dinheiro”, afirma.

As empresas são menos partidárias da regulamentação, mas reconhecem que a atual normativa urbanística gera “muita incerteza” em relação aos critérios e prazos para a concessão de licenças e qualificação do solo. “A lei pode melhorar nesse sentido e isso evitaria alguns casos de corrupção que ocorreram. Todo tipo de regulamentação que dê mais certeza em relação a prazos ou modificações do solo, que é nossa matéria-prima, será bem-vindo para todos os agentes profissionais”, destaca o secretario geral da Associação de Incorporadores e Construtores da Espanha.

“Também há uma responsabilidade dos cidadãos, porque não há cultura de se assessorar previamente e porque na Espanha também somos muito dados a especular”, reconhece Eduardo Bahamonde, sócio do escritório Praxis Legal. No entanto, muitos compradores que perderam suas economias por investir na casa própria durante a crise foram ressarcidos. Beatriz Brenes, funcionária do Instituto Geográfico Nacional, comprou na planta no empreendimento Los Llanos del Sur, em Alpedrete, em 2009. Depois de três anos de périplos judiciais, ela conseguiu reaver seu dinheiro. No terreno sobre o qual sua residência deveria ter sido erguida não se colocou um único ladrilho —hoje, está cheio de margaridas. Com o valor que recebeu, comprou um apartamento. “Nunca na planta, isso para mim é certo”, garante.

A lei salva-vidas para os prejudicados

A principal lei espanhola à qual se pode recorrer para recuperar o dinheiro investido foi derrubada em 31 de dezembro de 2016. Até então, a legislação exigia que as incorporadoras e cooperativas contratassem um seguro ou aval bancário que garantisse a devolução dos valores pagos antecipados para cobrir os aportes dos compradores de moradia caso as casas não fossem construídas ou entregues no prazo contratado.

A lei obrigava as entidades financeiras a garantir que a incorporadora ou cooperativa contratasse esse seguro ou aval. “A nova norma, em vez de proteger mais o consumidor, protege as entidades financeiras e seguradoras”, explica Bahamonde, sócio do escritório Praxis Legal. “O que existe agora é a obrigação de que haja um seguro ou aval desde que haja licença de construção, ou seja, todos os valores pagos antes que exista essa licença de ocupação do terreno não são protegidas pela lei.”

Atualmente, porém, a lei se aplica ainda a todos os casos anteriores a 2016. “Essa norma protegia qualquer comprador que tivesse pago prestações antecipadas de sua moradia em qualquer situação de venda na planta”, afirma Marta Serra, da Sala & Serra Advogados. “Cerca de 95% dos casos que ganhamos com a antiga legislação não poderíamos ganhar agora porque na época não era necessário que a incorporadora tivesse a licença da obra”, afirma.

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