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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O que falta para o Rio ser Medellín?

As manchetes dos jornais cariocas de hoje transportariam um medellinense de meia-idade para sua cidade, mas nos anos 1980 ou 1990

Militares patrulham Copacabana no dia 4 de abril.
Militares patrulham Copacabana no dia 4 de abril.CARL DE SOUZA (AFP)
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Distantes 7.800 km, Rio de Janeiro e Medellín são muito mais próximas do que se poderia imaginar. Ambas despertam suspiros por sua beleza natural, por motivos diversos foram polos econômicos pujantes que sofreram um baque a partir dos anos 1960 e têm um povo musical até a medula, que usa o diminutivo à vontade (é minutinho pra lá, minutico pra cá) e que afirma sem o menor constrangimento morar na cidade mais linda do mundo.

Mas também há o lado B das semelhanças, uma combinação bombástica de governos corruptos, favelas borbulhantes de potências e carências, desigualdades gritantes, segregações urbanas, degringolada econômica, violência, milícias, intervenção militar e a lista vai longe. Apresente as manchetes estampadas nos jornais cariocas de hoje a um medellinense de meia-idade e é bem provável que ele se transporte à Medellín dos anos 1980 ou 1990. Mas Medellin foi mais fundo. Bem mais fundo. A ponto de, em 1991, ter recebido o malfadado título de cidade mais violenta do mundo.

Duas décadas. Foi esse o tempo de que a cidade precisou para bater no fundo do poço, pegar impulso e se tornar referência mundial de reinvenção econômica, urbanismo social e cultura, aquinhoando prêmios cobiçadíssimos como, em 2013, o de “Cidade do Ano”, concedido por The Wall Street Journal e pelo Urban Land Institute às cidades mais inovadoras do mundo, deixando para trás finalistas do naipe de Nova York e Tel Aviv. E é justamente nesse arco de 20 anos, durante os quais os índices de violência caíram em 80%, que Medellín mostra caminhos, inspirações e provocações para nenhuma cidade em crise botar defeito.

Alguns traços dessa revolução dos amigos andinos são bastante conhecidos. Dentre eles, os famosos Parques-Biblioteca, estruturas icônicas em conteúdo e continente, tangibilização por excelência do urbanismo social — aquele que entende que o urbanismo pode e deve ser expressão profunda de política pública, voltado a urdir novos fios de conexões em e entre áreas de tecido social esgarçado. É claro que os edifícios, que desfilam um sem-número de prêmios arquitetônicos, são fulgurantes mas o mais importante é o que representam: o direito ao belo, o valor da estética e dos símbolos para quem é mais alijado de direitos. É evidente que o conteúdo programático, que expande exponencialmente o papel das bibliotecas para o de espaços de convívio e interação, para espaços de choque (aquele roçar de braços e pensamentos de pessoas que se cruzam), é de relevância inquestionável. E houve mais: um lixão urbano transformou-se em centro cultural de tirar o chapéu, um antigo presídio se converteu em campus universitário e o espaço público passou a reconectar pessoas e espaços. O que une tudo isso é o foco: não sobre projetos e sim sobre processos.

É nessa mesma lógica que se insere um flanco menos conhecido mas crucial para que Medellín tenha deixado para trás um passado sombrio de cidade de violência e tenha empunhado a bandeira de cidade da inteligência — ou melhor, de hub latino-americano de inovação. É claro que saber estabelecer e cumprir prioridades orçamentárias ajuda. Se em 2015 o setor de ciência e tecnologia recebeu 0,7% do PIB municipal, em 2016 o investimento foi de 1,82% (algo como 468 milhões de dólares) e a meta, até 2021, é chegar a 3% (mesmo desejo da Europa, que, leve-se em conta, está apanhando para chegar perto disso). E mais: 60% desse investimento deve advir do setor privado. Mas tão ou mais importante não é o quanto e sim o como.

Diante de uma situação complexa a resolver, da certeza de que seria resolvida e do reconhecimento de que ninguém sozinho sabia como fazê-lo, governo, setor privado, academia e cidadãos passaram a fazer algo na contramão do caminho pelo qual vai nossa crescente intolerância: ouvir uns aos outros. Tudo o que foi e vem sendo feito em Medellín parte de dois pressupostos: de que a voz do outro é importante (para opinar sobre as atividades das escolas, para discutir como será aplicado o orçamento, para desenvolver parcerias público-privadas baseadas em confiança); e de que inovação não é um fim e sim um meio para gerar qualidade de vida para todos (o que dá um puxão de orelha nos que acham que os cidadãos têm de se encaixar em soluções tecnológicas urbanas impostas de cima para baixo).

A partir daí, avançar foi inevitável. Doze universidades se uniram para formar a Tecnnova, que analisa futuras demandas do setor empresarial e prepara seus alunos para atendê-las. Detalhe: o orçamento da Tecnnova é rateado entre seus vários membros. No setor público, o Plano de Ciência, Tecnologia e Inovação parece ter sido o primeiro da América Latina a ser aprovado pela Câmara de Vereadores. Empresas Públicas de Medellín (EPM), conglomerado de empresas públicas com projetos voltados ao bem-estar do cidadão e que vê o lucro como essencial para isso, é outra grande força viva da economia e da inovação de Medellín. Há dez anos criou, em parceria com a Prefeitura, a Ruta N, centro de inovação e negócios da cidade, que articula com maestria essa estratégia — Alejandro Franco, diretor-geral da Ruta N, participa da Arena de Economia Criativa do Farol Santander, em São Paulo, neste sábado (14), às 11h30, com curadoria da Garimpo de Soluções. Considerada há poucas semanas uma das dez empresas mais inovadoras da América Latina pela FastCompany, a Ruta N vem alavancando a economia do conhecimento, nas parcerias entre empresas, políticas públicas, academia e cidadãos. Como se não bastasse, sedia o Distrito da Inovação — um espaço de 115 hectares, que percorre quatro bairros e concretiza no espaço urbano que um dia foi de mais baixo IDH da cidade a visão da Medellin que a cidade quer ser.

Um caso encantador, fascinante e aqui, do nosso lado, para mostrar que reinventar contextos em crise é não só possível, como inevitável. Um jato de alento para cidades como nosso maravilhoso Rio, para que não seja necessário chegar ainda mais fundo no poço para reagir.

Ana Carla Fonseca é diretora da Garimpo de Soluções.

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