As execuções à luz do dia na Grande Natal, a quarta região mais violenta do mundo
A Grande Natal teve, em 2017, a maior taxa de homicídios do país. Na periferia, as mortes acontecem a qualquer hora e sempre acompanhadas de muitos tiros
Fábio caiu às 18h40 do sábado, 10 de março. Àquela hora, a praça do bairro de Bom Pastor, na periferia de Natal, capital do Rio Grande do Norte, estava lotada. Seu corpo teve 12 perfurações de bala: cinco na cabeça, uma na mão, uma na perna, duas no abdômen e três nas costas. Os assassinos agiram rápido, assim que ele desceu da moto. No chão, já sem vida, ele deitava ainda de capacete na calçada, ao lado de aparelhos de ginástica da Prefeitura usados como brinquedo pelas crianças do bairro. Diversão interrompida, elas agora rodeavam o cadáver.
“Foi pá-pá. Pápápápápá”, reproduz um dos moradores enquanto olha corpo no chão. Neste espetáculo macabro, encenado em uma região com poucas opções de lazer, a sonoplastia serve para explicar que os criminosos usaram dois tipos de armas, que faziam barulhos diferentes. Por ali, os tiros fazem parte do cotidiano e são reconhecidos pelo som.
À margem dos holofotes da intervenção militar na segurança pública no Rio de Janeiro, onde a vereadora do PSOL Marielle Franco foi executada há um mês, o Rio Grande do Norte também amarga estatísticas de violência sombrias. No ano passado, o Estado bateu seu recorde histórico de homicídios. E a Grande Natal chegou ao posto de quarta região mais violenta do mundo, com uma taxa de 107 mortes para cada 100.000 habitantes, segundo dados divulgados no mês passado pela organização mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça. A região perde apenas para Los Cabos (México), Caracas (Venezuela) e Acapulco (México). O ranking é contestado pelo Governo do Rio Grande do Norte (leia abaixo).
Apenas no ano passado, foram assassinadas, em média, quase quatro pessoas por dia nesta área, que envolve a capital e 12 municípios do entorno. Um número alto, se considerada a pequena população de 1,3 milhão de habitantes (um nono do tamanho da capital paulista, por exemplo, onde nove pessoas foram assassinadas ao dia no ano passado). A alta das mortes na região metropolitana é impulsionada pela combinação entre uma inflamada guerra de facções pelo controle do tráfico de drogas — de um lado está a paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e, de outro, a potiguar Sindicato do Crime RN— e o pouco investimento em segurança pública.
Tudo é escasso ali. "Para começar, faltam políticas sociais para atacar as taxas de evasão escolar e resolver os bolsões de pobreza. Falta um sistema penitenciário menos vulnerável, de onde não fujam mais de 500 presos, como ocorreu no ano de 2016. Falta efetivo, especialmente da Polícia Civil. E faltam equipamentos para as provas técnicas", afirma Ivenio Hermes, coordenador de pesquisa do Observatório da Violência Letal Intencional no Rio Grande do Norte, instituição ligada à Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), que mapeia os homicídios no Estado.
Em todo o Rio Grande do Norte só há 28% dos policiais civis necessários, segundo determina uma lei estadual. São 176 delegados, 2.934 agentes de polícia e 612 escrivães a menos. “É como se estivéssemos em permanente estado de greve”, afirma Nilton Arruda, presidente do Sindicato da Polícia Civil (Sinpol). A Polícia Militar também tem menos homens do que o necessário: são 8.200, quando o ideal seria um efetivo de 12.000.
Além disso, muitas vezes faltam até salários, mesmo em meio à escalada da violência. Com o pagamento atrasado por dois meses, policiais chegaram a paralisar as atividades entre 19 de dezembro do ano passado e 10 de janeiro deste ano. “Não fizemos greve. Paramos porque faltou dinheiro para pagar a condução para ir trabalhar e para comer”, afirma Arruda. “Como se coloca na rua um policial que está com problemas de pagamento, com dívidas em casa? Um psicológico desequilibrado pode levar a escolhas incorretas”, complementa. Em 6 de janeiro deste ano, o Governo chegou a decretar estado de calamidade no sistema de Segurança Pública, devido ao aumento de violência ocorrido em meio à paralisação. O Governo federal enviou homens do Exército para reforçar a segurança —a ajuda federal já aconteceu por três vezes no Rio Grande do Norte.
Os extermínios
Naquele sábado de março, além de Fábio morreram José, Lúcio, Anderson, Beto e João —nomes fictícios para resguardar as famílias, que ainda vivem nas áreas dos crimes. Todos homens e moradores de algum ponto da periferia da Grande Natal. As 63 perfurações de bala que seus corpos receberam em conjunto deixam claro o perfil destas mortes: execuções a sangue frio. Além dos muitos tiros, algumas vezes, como demonstração de poder, os algozes também esquartejam ou degolam os corpos, como ocorreu em janeiro do ano passado no presídio de Alcaçuz, quando 26 presos do Sindicato do Crime foram decapitados por homens do PCC.
As mortes também não têm local ou hora para acontecer. Os assassinos nem se acanham se houver público, tamanha a certeza de que em meio ao medo da população dificilmente alguém ajudará a descobrir o culpado. Em apenas 45% dos crimes o autor é descoberto. Seis em cada dez homicídios estão relacionados com as drogas: seja pela disputa do tráfico, por dívidas ou porque se viu ou falou algo que não deveria.
Naquele sábado, eram 9h quando o rádio da polícia que comunica as ocorrências chiou pela primeira vez. O plantão da Delegacia de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de Natal havia começado havia pouco mais de uma hora. Do outro lado da linha, veio o aviso que um homem havia sido assassinado em uma rua de Nossa Senhora da Apresentação, o bairro com maior número de mortes violentas da cidade, segundo o delegado diretor da DHPP, Marcos Vinicius dos Santos. A reportagem do EL PAÍS acompanhou aquele plantão, no dia da semana em que geralmente mais se mata por ali.
O corpo era de José, de 32 anos. Ele deitava de barriga para cima, embaixo de um lençol. Estava havia quase duas horas no meio da via, entre as entradas de um mercadinho e de uma pequena papelaria. Dezenas de homens, mulheres e crianças curiosas o rodeavam. Catador de materiais recicláveis, ele ia de bicicleta até a casa da mãe quando foi surpreendido por dois homens em uma moto, que sem aviso começaram a atirar. Seu corpo foi perfurado seis vezes. Era o terceiro, dentre 12 irmãos, a morrer assassinado.
Logo no início da tarde, o rádio apitou novamente. Lúcio tinha morrido no hospital Walfredo Gurgel, para onde foi levado após ser alvejado por assassinos quase na porta de casa. Eram 14h15 e ele entrava na oficina do vizinho quando um carro freou e dois homens desceram atirando. Seu filho, de 10 anos, se escondeu. Mas viu quando o pai foi alvejado pelos tiros. “Acertaram meu pai! Mataram meu pai!”, gritou o menino, contou Wellington Freire Júnior, dono da oficina. Lúcio era segurança e trabalhava à noite, em eventos. Teve 14 perfurações de bala: cinco no peito, uma no pescoço, uma no braço e sete nas costas. Chegou ao hospital já morto.
Anderson, 26 anos, terceira vítima naquele plantão, foi assassinado a 40 quilômetros de Natal, no município de Macaíba. Por volta de 18 horas, dois homens chegaram ao bar onde ele bebia uma cachaça Corote e anunciaram um assalto. Mas não levaram nada. Apenas atiraram nele. Seis vezes. “Acho que foi engano. Ele não era metido com nada. Só bebia de final de semana, não devia nada a ninguém”, dizia a esposa, aos prantos. Já o pescador Beto, de 29 anos, morreu no quintal da própria casa, por volta de 23h, na turística praia de Pitangui, no município de Extremoz: foram sete tiros na cara e 12 nas costas. Por volta de 1h do domingo morreu João, vigia de rua no bairro das Rocas, um dos mais antigos de Natal —fazia uma ronda em sua moto quando foi atingido: foram dez perfurações no total. João se tornaria pai neste mês.
A maior parte destas mortes aconteceu em público. Mas ninguém, em nenhum desses locais, diz ter visto o crime acontecer. Apenas em um caso se sabia o modelo do veículo utilizado e, em outro, como se vestiam os assassinos. O medo e o silêncio imperam. Nem as famílias das vítimas tinham pistas que poderiam ajudar a explicar o motivo das mortes. “Essa é a maior dificuldade das investigações. As pessoas têm muito medo de falar. De dar qualquer informação que ajude a polícia”, explica o delegado Marcos.
“Se alguém aqui disser quem matou, morre também. Eles te matam mesmo. Aqui a gente já está acostumado: ouve os tiros e se esconde dentro de casa para não correr nem o risco de ver”, resumiu uma das parentes das vítimas. Uma palavra errada —ou até uma visita desconhecida que possa levantar suspeitas de ser policial— pode ser o motivo para um novo crime brutal. Por ali, todos já viram isso acontecer. “Quando se tem dinheiro, se consegue mudar, sair. Mas eu não tenho. Não fiz nada de errado, não me envolvi com nada e, infelizmente, pode ser que amanhã eu seja mais um número para as estatísticas”, lamenta o dono da oficina onde ocorreu uma das mortes.