Funkeira, sambista e trans, a pedra rara do Sambódromo
Marcelly Morena foi expulsa de casa aos 16 anos, entrou o mundo do funk e virou princesa do Carnaval da sua cidade, Duque de Caxias. Seu orgulho é romper tabus na tradição do samba
Marcelly Morena é uma pedra rara no Carnaval do Rio de Janeiro. Ela é funkeira, sambista e uma das poucas transexuais com destaque no Sambódromo. Aos 31 anos, Marcelly vai cumprir o sonho de desfilar como a primeira passista trans da escola Acadêmicos do Grande Rio, uma das doze do Grupo Especial. “Estou aqui para quebrar tabus”, reivindica.
É uma grande conquista, mas ela apenas teve que pedir. “Geralmente as escolas de samba não dão oportunidade para uma mulher trans ser passista, é uma ala só de mulheres cis, mas eles aceitaram na hora”, diz Marcely. A quadra, no centro de Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio, a recebeu de braços abertos. A Grande Rio, que tem como rainha da bateria a atriz global Juliana Paes, já conta com uma ala LGBT, em que transexuais, gays e travestis sentem-se mais representados.
Marcelly está tão eufórica – e tão solicitada – que não quer entrar nos detalhes das dificuldades que a levaram até aqui. A primeira lembrança que ela tem de se sentir presa no próprio corpo é dos nove anos. “Eu não era boa brincando com coisa de menino, não conseguia rodar pião, mas me dava tão bem com as bonecas que estava sempre rodeada de meninas”, conta pouco antes de inaugurar o Carnaval de Caxias pelo terceiro ano consecutivo como segunda princesa.
Sua angústia por se sentir uma menina e começar a gostar de garotos a asfixiava numa casa humilde onde nem o pai nem a mãe cogitavam a transformação que viria depois. Aos 11 anos, o patriarca lhe indagou se era gay. “Se eu dizia que sim, ele iria me bater, então neguei”, lembra. “Ainda bem”, lhe disse o pai satisfeito. Mas aquela pressão não a deixava viver, não conseguia estudar, e aos 16 anos confessou.
O pai a expulsou de casa e Marcelly pegou uma mochila e partiu para nunca mais voltar. A reconciliação com o pai, que ainda a chama no masculino, só veio seis anos depois. “Nem tive que perdoar. Na verdade passou todo esse tempo para ele me perdoar pelo que ele fez. Mas não tenho mágoa. Entendo como é difícil”. Durante muito tempo morou de favor, se estabilizou graças a um casamento de sete anos e ainda agradece por não ter entrado no crime. “Era o caminho fácil, mas devo muito à educação dos meus pais”, orgulha-se. "Agora, também sei que se eu já tivesse nascido mulher teria conquistado tudo muito antes. Hoje estaria muito mais longe".
Os anos se passaram e a passista começou a se aproximar do mundo do funk. Conheceu a já falecida Lacraia, que ficou famosa com os hits Eguinha Pocotó e Vai Lacraia e virou sua produtora. Depois começou a dançar com a maior equipe de funk do Brasil, a Furacão 2000, e acabou criando um grupo de funkeiras transexuais. Hoje é parte da dupla Karlos & Marcelly com a qual paga suas contas. Sua participação na escola de samba é “por amor”, mas não lhe rende um real. “Eu não só represento a quebra do preconceito numa grande escola, mas também a união das sambistas com as funkeiras, dois mundos com certa rivalidade. Eu não saberia escolher. Sou do Rio! Sou os dois!”, diz com orgulho.
Marcelly desfilará pela primeira vez no Sambódromo neste domingo e sonha com ascender na escola que a acolheu e poder, talvez no ano que vem, ser musa da ala LGBT. Depois do espetáculo, televisionado no mundo inteiro, quiçá saiba o que o pai pensa sobre sua conquista. “Ele não me diz, mas sei que comenta com minha mãe o que eu consegui”.
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