Gumercinda e Alice querem viver
A longa e perigosa jornada de mães e bebês tartarugas num dos berçários mais espetaculares do mundo
Desponta uma cabecinha. Brotando da areia. Ploft.
Ela é pouco maior do que uma unha. Mas uma unha é capaz de esmagá-la. Sou o primeiro ser vivo que ela vê, meu olhar seu primeiro contato com o mundo de fora, o planeta que fica além da areia. Vida com vida.
O êxtase é todo meu, ela pode estar apenas assustada. Ou curiosa. Ainda no lado de dentro, há o restante de seu pequeno corpo. Abra seu polegar e seu indicador, mas não muito, e você saberá o tamanho dela. Vou chamá-la de Alice, porque nós, humanos, gostamos de nomear. Mas ela deve se conhecer por caminhos que desconhecemos.
Alice é uma tartaruga-da-amazônia, um dos maiores quelônios de água doce do mundo, e sua espécie reedita, ano após ano, uma saga impressionante. Aquela cabecinha verde é um esforço monumental de sobrevivência de um ser cada vez mais ameaçado. Sua mãe teve que enfrentar perigos tão grandes quanto Ulisses em sua odisseia mítica, para botar o ovo de onde ela eclodiu. E Alice, aquele pequeno conjunto de fragilidades que ainda nem espichou seu nariz ao sol, terá pela frente uma travessia povoada de armadilhas reais. Alice é pequena, mas é valente. Muito valente. Não como uma qualidade moral, mas como força de vida. Se não fosse valente, sua cabecinha não estaria lá, curiosando o mundo além do mundo.
Vou contar de Gumercinda, que poderia ser sua mãe. Não sabemos quem é a mãe de Alice, mas sabemos que Gumercinda esteve lá, no Tabuleiro do Embaubal, na bacia do rio Xingu, no Pará. Este território é o lugar de reprodução de Gumercinda e de outras 20.000 tartarugas, assim como de tracajás e de pitiús, outros tipos de quelônios. O Tabuleiro do Embaubal é um espaço que, à primeira vista, faz o mundo parecer bom. À primeira vista, ele é só lindo. E habitado por espécies que conversam sem atrapalhar o silêncio.
Gumercinda é uma das oito tartarugas monitoradas pelos biólogos Cristiane Costa Carneiro, a “Cris das Tartarugas”, e Juarez Pezzuti, o “Juca”, professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém. Em 2013, eles botaram em cada uma delas um rádio e uma antena para acompanhá-las por satélite. Os ribeirinhos chamam essa antena de “chifre”. A de Gumercinda é a única que, até hoje, permanece ativa. A bateria das outras pode ter acabado ou o chifre se perdido ou algo mais brutal. Gumercinda, não. Ela segue sob vigilância, como se estivesse em um reality show no qual ela é a única que não sabe que é estrela. Ou será que sabe?
A tartaruga Gumercinda tinha 35 quilos na última vez em que foi pesada, mas sua espécie pode passar dos 60 quilos, o peso médio de uma mulher adulta. Ela vive no Arquipélago de Marajó, na foz do rio Amazonas. Mais especificamente na Ilha de Salvador, no município de Afuá. É lá que ela passa a maior parte do ano, comendo e se esforçando para se manter viva. Gumercinda provou-se fiel ao que os cientistas chamam de “área de alimentação” e “área de desova”. Uma e outra só são abandonadas quando a comida escasseia, na primeira, e os riscos para os filhotes se tornam grandes demais, na segunda. É possível saber onde Gumercinda está, mas o que será que ela sente quando encontra seus pratos favoritos, suas frutas, a melhor de todas elas, o mucajá? Qual é a sensação de nadar ou de se expor ao sol? Como ela experimenta seus instintos?
O que sabemos é que, em 6 de agosto de 2017, algo se moveu dentro de Gumercinda, algo que a fez deixar sua casa e se por a caminho. Nos anos anteriores, ela iniciou sua jornada algumas semanas depois. Mas, desta vez, Gumercinda e as outras perceberam sinais de que as grandes chuvas chegariam antes do tempo. Gumercinda iniciou então uma travessia de 854 quilômetros, quase duas vezes o trajeto entre São Paulo e Rio de Janeiro, com muitas chances de morrer no percurso. E fez isso nadando. Algumas de suas colegas de chifre costumam vencer distâncias ainda maiores, de mais de mil quilômetros. Nem Gumercinda nem elas estão sozinhas. Essas mães viajam em bandos de mais de meia centena de tartarugas, todas colocadas em movimento por um instinto imperativo.
Gumercinda viaja mais pesada, com pelo menos três quilos extras, representados por cerca de 100 ovos. Esse número é apenas uma média, a quantidade pode chegar até a algumas dezenas mais do que isso. E viaja devagar, talvez cuidando de sua preciosa bagagem. Em bando, são como um grupo de mães subindo primeiro o Amazonas, depois o Xingu. Nadando contra a correnteza pelos grandes rios, mas não alegremente. Atentas, cautelosas, escutando e farejando. No Amazonas, os riscos existem, mas são menores. Jacarés, às vezes. Ribeirinhos em busca de uma tartaruga para matar a fome do dia. Alguma caça comercial. Na região do município de Gurupá já começa a aparecer um número maior de caçadores de tartarugas. Mas é na região de Porto de Moz, no rio Xingu, que a vida de Gumercinda e de suas colegas de maternidade converte-se em perigo.
A bióloga Cristiane Costa Carneiro fica tensa quando Gumercinda se aproxima da região de Porto de Moz. Seus olhos estão presos no computador, acompanhando os sinais do satélite. Nesse território, o predador é humano. E só o que é humano sabe destruir em massa. Ali, caçadores colocam o espinhel, uma barreira com até mil anzóis. Na ponta de cada um deles está o mucajá, uma fruta que equivale a um bombom para as tartarugas. Nessa barragem perfurante, centenas morrem por dia. Cada uma dessas tartarugas, assassinadas em sua viagem de maternidade, carrega outras cem possibilidades de vida. Carrega uma centena de Alices que não nascerão.
É criminoso. A caça de tartarugas-da-amazônia (Podocnemis expansa) é proibida. Apenas a população ribeirinha, se em determinado momento não tiver outra fonte de proteínas disponível, pode capturar uma tartaruga para dar alimento à sua família. E apenas nessas circunstâncias. Mas o que é a lei nesse momento do Brasil? Se humanos são mortos impunemente, o que resta para as tartarugas-da-amazônia? Essas mães são vendidas para restaurantes, viram prêmio em competições, chegam a valer 200 reais no mercado ilegal à luz do sol. Sua vida é assim interrompida.
Uma brusquidão, uma dor. O sangue.
As tartarugas deixam de ser criaturas capazes de um feito extraordinário para serem reduzidas a mercadorias, em coisas que podem ser vendidas e compradas. O humano é o único predador que tira a dignidade do que é vivo ao matá-lo. A tartaruga morta por um jacaré, ser contra ser, é ainda uma tartaruga. A tartaruga morta por um ribeirinho para matar a fome, ser contra ser, ainda é uma tartaruga. A tartaruga morta por caçadores para o comércio em grande escala é carne de tartaruga. Esvaziada de substância, só tem preço.
Nesse ponto da viagem é como se Cristiane suspendesse a respiração. Gumercinda ultrapassa Porto de Moz, uma façanha que tem repetido ano após ano. Então a bióloga respira. Suspeita que Gumercinda aprendeu que não deve comer esses bombons na região de Porto de Moz. Que passa por baixo da barreira e segue. Atenta, cautelosa, escutando e farejando seu predador mais feroz.
Gumercinda só alcança seu destino, o Tabuleiro do Embaubal, 32 dias depois da partida, em 8 de setembro. Está exausta, mas ainda não está a salvo. Desde 2016, esse tabuleiro é um Refúgio de Vida Silvestre, uma unidade de conservação criada para proteger os quelônios que fazem dele um gigantesco berçário nessa época do ano. Mas os caçadores não dão trégua também ali. Em 2017, a fiscalização atrasou porque as voadeiras estavam quebradas. Gumercinda e as outras tartarugas adivinham a ameaça. Em seguida, testemunham outras mães serem caçadas ao chegarem da longa jornada. Escaparam dos espinhéis de Porto de Moz, mas foram capturadas na área protegida por lei, mas onde a lei às vezes é uma miragem.
Gumercinda fareja a fera que é humana. E a teme. Gumercinda escuta. Está arisca, com medo. Ela pode botar seus ovos na Piteruçu, uma praia que não passou por intervenção humana, ou no Juncal, uma praia alteada artificialmente para que exista mais areia para os ninhos. Gumercinda parece preferir a areia mais macia e de temperaturas mais baixas da Piteruçu, onde os ovos têm mais chance de eclodir. Mas houve ataques de caçadores. Gumercinda observa. E hesita.
Cabe a ela fazer a escolha mais difícil: arriscar-se a perder a vida e uma centena de ovos que significam a sobrevivência de sua espécie ou arriscar-se um pouco menos e escavar seu ninho no Juncal, onde os filhotes terão menos chance de saírem dos ovos e de sobreviver, por conta da areia mais grossa e das temperaturas mais elevadas.
Gumercinda leva mais de 20 dias para fazer essa escolha. Fica indo e vindo com as outras, a cada dia arriscando-se um pouco mais longe na praia, cheirando o chão, avaliando e experimentando. Decidindo. Depois, ela e seu bando “assoalham”, deitadas sobre a areia, aquecendo-se ao sol para estimular o metabolismo e também a ovulação. Até que uma ou duas mais corajosas começam a escavar o ninho, e as outras a seguem.
A tartaruga Gumercinda acaba por escolher a Ilha do Juncal, como a maioria. Ela banha-se no rio uma última vez antes de escalar a areia da praia. Lentamente. Sempre farejando e escutando. Se pressentir qualquer perigo, ela volta. Gumercinda escolhe o lugar. Não é tão fácil. Ao seu redor, centenas de tartarugas escavam seus ninhos. Vrum vrum vrum. O barulho que elas fazem não cabe em palavras. Cada uma das centenas levanta uma nuvem de areia de quase dois metros de altura. Cavam sem parar, sem parar.
Sem parar.
São três horas da madrugada quando nosso barco encosta na Ilha do Juncal. É minha experiência mais profunda como estrangeira. Eu deveria dizer astronauta. É assim que me sinto. A paisagem monumental é iluminada apenas pela lua. E as gaivotas sentinelam nossos passos. De imediato nos denunciam com seus gritos agudos, avisando que aquele que não deveria estar lá está pisando terra de não humanos.
Avançamos em silêncio.
As tartarugas estão mais assustadas do que o habitual por experiências recentes de violência. Em 8 de outubro, três agentes da fiscalização, contratados pela prefeitura de Senador José Porfírio, estavam alcoolizados na praia, pisando na área da desova e tocando nas tartarugas. O estresse dessas mães limita nosso trabalho de documentá-las. Rastejamos até chegar às bordas do Tabuleiro. E não ultrapassamos aquele limite. Por quase três horas ficamos ali, deitados de barriga para baixo na areia. Não enxergamos nada além das estrelas, tantas estrelas, acima das nossas cabeças. O que acontece bem perto só escutamos. Vrum. Vrum. Vrum. E escuridão.
Estamos ali para que elas se acostumem com o nosso cheiro e a nossa presença fronteiriça. Para que acreditem que não lhes faremos mal. Ou então todas voltarão para a água.
E então o dia amanhece no Tabuleiro do Embaubal. E o que vemos está fora dos adjetivos. Percebo que o limite não é só o da proximidade, mas também o das palavras. E é honesto reconhecê-lo logo. O repórter fotográfico Lilo Clareto e eu sabemos que as imagens e as palavras contarão apenas parcialmente uma enormidade que é a própria vida narrando a si mesma. Belezaviolência como um único substantivo, fundido num só corpo de letras.
O encantamento é interrompido por uma esquadrilha de urubus. Crac.
São centenas eles também. E são imponentes. Num de repente eles baixam do céu sobre a praia. Não ameaçam as tartarugas, protegidas por grossas carapaças de até 80 centímetros de comprimento. Apenas seus ovos, quando algum deles é empurrado para fora por acidente. Na ânsia de escavar, às vezes uma dessas mães acaba lançando os ovos da outra para fora do ninho. É quando o urubu avança. É ele também um ser impressionante. As tartarugas os aceitam como um faz parte.
Gumercinda escolhe o seu lugar. Ela permanecerá cavando sem parar por uma hora. Até que o buraco atinja mais de meio metro de comprimento, às vezes até 70 centímetros. Ali será o ninho de seus filhotes, e ela capricha na profundidade, para que predadores não consigam alcançá-lo com o bico ou com as garras. Gumercinda então fica imóvel sobre ele. Por cerca de 30 minutos ela botará sua centena de ovos ou mais. Ao seu redor vrum-vrum-vrum. A areia voa por todos os lados. Os urubus são intrometidos, mas Gumercinda parece não se importar. O que experimenta ela nesse momento? Não entendo a linguagem de Gumercinda, nem ela a minha.
Meia hora mais tarde, Gumercinda se levanta e começa a cobrir o buraco. Há uma tecnologia atávica neste, como em todos os atos. Com as patas traseiras ela vai jogando a areia para dentro do ninho e com o peito, chamado pelos pesquisadores de “plastrão”, ela vai batendo para compactá-la. Cristiane não se contém: “É perfeito! É perfeito!”, sussurra.
Mais uma hora até que a areia vire um escudo para os ovos. Cada tartaruga é ali uma artista fazendo a escultura da reprodução. Ao final do período de desova, haverá um tesouro de dois milhões de ovos enterrados ali. É uma estimativa. Há anos em que pode ser metade disso, anos em que é mais. Depende das variações climáticas, cada vez mais intensas, e da competência do sistema de proteção. Em 2009, ano em que não houve fiscalização, a bióloga conta que cerca de 2.000 tartarugas foram capturadas no Tabuleiro do Embaubal e levadas para a morte. Cristiane acompanha a desova das tartarugas no tabuleiro desde 2004, ainda como estudante, e desde 2007, já como pesquisadora. Aprendeu muito do que sabe com ribeirinhos da região, como Luiz, um homem de densidões, e Tuíca, um homem que enxerga quase sem olhos.
Gumercinda termina. Parece satisfeita com seu trabalho. Ela olha para o céu. Em nenhum momento ela deixou de farejar, escutar, atentar. E então, lentamente, empreende o caminho de volta para a água. Gumercinda está exausta. Como a areia do Juncal é mais grossa, suas patas se feriram e sangram. Suas patas são como mãos em carne viva.
Gumercinda mergulha no Xingu. No vigésimo-sétimo dia de sua estadia no Tabuleiro do Embaubal, em 5 de outubro, ela inicia sua longa jornada de retorno. Ela agora está mais magra, porque há poucas frutas na região da desova e a competição é grande. Gumercinda já não carrega sua bagagem. Desta vez, nada a favor da correnteza. Mas a fera que é humana está lá. Com seus espinhéis e com suas redes. Gumercinda não pode deixar que a exaustão lhe embote os sentidos nem que a fome lhe engane. Ela nada muito rápido, desviando-se dos perigos. Gumercinda é uma boa sobrevivente. Ela, como as outras, são magníficas.
Na base de fiscalização do Tabuleiro do Embaubal, Cristiane Costa Carneiro é técnica de gestão ambiental do Ideflor-bio, órgão do estado do Pará. Ela divide a base com 12 agentes de fiscalização e um biólogo, contratados pela prefeitura de Senador José Porfírio, e com os policiais militares da patrulha ambiental, que vêm de Belém do Pará. “Cris das Tartarugas” mais uma vez está tensa. Seu “escritório”, embaixo da casa, fica ao lado da rede onde ela dorme. A sede é uma construção muito abafada e infestada de baratas. Embaixo, em meio aos alicerces, há uma brisa enquanto essa espécie de doula de tartarugas acompanha o percurso de Gumercinda pelo computador.
E então, alívio. Em 17 de outubro, Gumercinda está de volta ao Arquipélago de Marajó. Levou apenas 13 dias para vencer mais de 800 quilômetros pelos grandes rios. Nadou uma média de 65 quilômetros por dia. Gumercinda agora se fortalece, se alimenta. Daqui a um ano, se não for morta por nenhum predador, Gumercinda empreenderá mais uma vez sua saga. O que chamo de saga, eu sei, para Gumercinda é apenas vida.
Até dezembro, a Ilha do Juncal é um ninho gigantesco, povoado apenas pelos pássaros e por uma multiplicidade de insetos. A película verde, que revestia parte da sua pele como uma seda muito delicada, agora se fortalece. O inverno amazônico chegou, e as águas agora também descem do céu. Há dias em que há rio em cima e rio embaixo. Tudo ali cresce ferozmente. É tempo de os primeiros ovos começarem a eclodir, cerca de 45 dias depois de serem aninhados por suas mães em regaço de areia. O Tabuleiro do Embaubal agora é um berçário. Esses bebês são tão frágeis. E talvez eu nunca tenha visto nada tão valente.
Como Alice.
Mais uma vez somos astronautas desembarcando em uma lua da Terra na madrugada. Desta vez, ainda mais cedo, por volta da meia-noite. E mais uma vez os pássaros nos adivinham e denunciam. É nessa hora que as pequenas tartarugas começam a brotar da areia. A Ilha do juncal está cercada com uma tela para um programa de manejo. A maioria das tartaruguinhas é recolhida e jogada em caixas pelos agentes e por funcionários de uma empresa terceirizada. Serão contadas e libertadas em lugares escolhidos, onde supostamente têm mais chance de sobrevivência.
Filhotes mais ousados conseguem saltar a cerca e fazer o caminho natural rumo à água, onde com sorte encontram tartarugas adultas que escolheram viver na região do Tabuleiro do Embaubal o ano inteiro. Os pequenos agrupam-se junto a essas fêmeas adultas, que com sua presença os protegem de alguns predadores. Ficam fortalecendo-se, comendo folhas, limo e pequenas algas. Crescendo. Talvez no ano seguinte migrem com suas mães que voltam para a desova, mas não há provas de que isso aconteça. Há madrugadas em que chegam a nascer 20.000 bebês de uma vez.
Agora, podemos caminhar sobre o tabuleiro. Mas com todo o cuidado. Pé depois de pé, muito lentamente, porque os filhotes brotam de todos os lados. Eles acabaram de nascer e espiam os gigantes esquisitos, que andam sobre duas pernas, que somos nós.
Queremos acompanhar um nascimento. Parece fácil, mas não é. É preciso adivinhar onde há um ninho em que um filhote vai nascer nas próximas horas. É necessário observar se um pequeno redemoinho vai se ampliando na superfície. Posicionamos a câmera de vídeo diante de um deles e filmamos movimentos quase imperceptíveis. Emocionados, comemoramos aos sussurros cada alteração. E então, duas horas depois, com o corpo e a câmera na mesma posição... “nasce” uma paquinha, um inseto que se esconde na areia. Os filhotes que correm ao nosso redor devem achar que nasceram num planeta de criaturas altas, mas de cabeça fraca. É melhor correr um pouco mais rápido.
Com a ajuda de Cristiane, deslocamos a câmera para outro redemoinho, alguns centímetros ao lado. Ainda não sabemos, mas estamos próximos de uma das emoções mais intensas de uma vida de repórter. Alice está ali, mas não sabemos. Apenas esperamos.
Não há dúvidas de que será uma fêmea. Esse é um problema comprovado na Ilha do Juncal. Se a areia estiver acima de 32 graus, o que se desenvolve é o aparelho reprodutor feminino. Se estiver abaixo de 32 graus, o que se desenvolve é o aparelho reprodutor masculino. Como a temperatura da areia mais grossa, no Juncal, está acima dos 32 graus, 100% dos filhotes são fêmeas. E, assim, ano após ano, os machos começam a rarear. Décadas atrás, os ribeirinhos relatam que havia vários machos cercando uma só fêmea. Agora, existem machos nadando por ali na época da desova, cumprindo o ciclo da reprodução, mas em número bem menor do que antes.
Nós, que não sabemos olhar, enxergamos apenas uma paisagem estonteante. Mas há uma explosão de acontecimentos simultâneos o tempo todo. Sexo, nascimento, morte.
Estamos há uma hora ali sem que nada pareça acontecer. E então... Ploft. Brota uma cabecinha da areia. São 3 horas e 12 minutos da madrugada de 20 de dezembro. E Alice faz seu primeiro contato com o mundo.
É minúsculo. E é grandioso. Parece um repente, um súbito. Mas não é. Aquela pequena permaneceu no mundo submerso feito de areia, em total escuridão, por no mínimo dez dias depois de romper a casca. Enquanto está no ovo, ela vai se alimentando do vitelo, a gema, por meio de uma espécie de cordão umbilical. Sim, essa pequena criatura tem umbigo. E quando o vitelo acaba e o umbigo já está bem sarado, ela deixa o ovo. Mas carrega dentro de si um pouco desse alimento, uma reserva que a sustentará pela longa jornada em direção à superfície. Dias e dias cavando com patinhas que recém começam a ser experimentadas. Para cima e para cima, numa areia mais grossa do que deveria ser, e compactada pelas primeiras chuvas e pela maré que vai subindo.
Nascer é uma pequena epopeia para um filhote de tartaruga. Em especial se ela for uma desbravadora, como Alice, a primeira a sair do ninho. Suas irmãs poderão seguir um túnel já percorrido. Alice ainda nem viu o mundo de fora e já está exausta. O filhote tem os olhos ainda fechados e respira pela boca, ofegante. Só nesse gesto ela já é uma sobrevivente. De cerca de dois milhões de ovos, ela é uma das 400.000 tartaruguinhas que chegou a brotar, este também um número ainda estimado. Há anos que já foi metade disso, outros em que foi bem mais.
A contagem dessa última eclosão só terminará no final de janeiro. A média de nascimentos é de vinte por cento apenas, afirma Cristiane. O restante dos ovos nem chega a eclodir, por alagamentos ou por altas temperaturas. Os ovos postos por suas antepassadas eram usados aos milhões para a iluminação de cidades. Hoje, a predação por humanos e as mudanças climáticas ameaçam a sobrevivência da espécie.
Mas Alice nada sabe disso. Ela está ali. Tentando. Só vai abrir os olhinhos - verdes - pela primeira vez quando um inseto senta sobre ela. Depois é um besouro que usa sua cabeça como pista de decolagem, numa falta de cerimônia assombrosa. Algumas dezenas de minutos e um gafanhoto parece achá-la interessantíssima. A luz de nossa câmera perturba seu nascimento, às vezes parece que ela fecha os olhos na esperança de que, ao abri-los novamente, nós teremos desaparecido. Em vão.
Alice se mexe, tenta se livrar dos bichos enxeridos, atraídos primeiro pela luz, depois por ela. Assim que consegue, volta a dormir. Às vezes tenta ignorá-los, porque está muito, muito cansada. Mas insetos de todos os tipos a perturbam. E ela é obrigada a abrir os olhos de novo. Dar um safanão com a patinha. E assim vai tirando o corpinho de dentro da areia. Só esse movimento já a exaure, e ela respira pela boca várias vezes. Em certo momento, espicha o nariz bem para cima e olha. Olha muito. Parece estar vendo as estrelas pela primeira vez. É este o mundo afinal.
Por esse instinto poderoso, que a sustentará enquanto viver, Alice sabe que precisa emergir durante a noite, antes que os urubus e outros pássaros baixem sobre a praia, caçando-a. Alice parece atrasada. E começamos a ficar aflitos. Mas então o sol aponta no horizonte, apenas uma promessa de luz. E ela abre os olhos. Desta vez, não os fecha mais. Num repente, limpa a areia do olho direito com uma patinha, a do olho esquerdo com outra patinha, e desanda a correr rumo à água. Há mais de uma centena de metros entre ela e o rio, a jornada é arriscadíssima.
Alice sobe e desce dunas que, diante de sua pequenez, devem parecer enormidades. Para apenas uma vez, quando escuta o grito estridente de uma gaivota. E volta a correr. Quando chega mais perto do rio não há apenas areia, mas uma vegetação rasteira que, para ela, deve se assemelhar a uma floresta. Ela não hesita. E segue adiante. Correndo, correndo para a vida. Alice finalmente mergulha no Xingu. Pela primeira vez. Ela nada sem que ninguém nunca a tenha ensinado a nadar. Seu pequeno casco vai sumindo na água.
Minúscula.
Olhando de longe, as tartaruguinhas são todas iguais. Mas, quando as olhamos de perto, elas viram indivíduos, e os traços de cada uma são singulares, assim como a personalidade. Alice era particularmente nariguda e um pouco desengonçada. Havia filhotes mais bonitos, havia filhotes maiores, havia filhotes mais espertos. Nenhum deles era tão doce quanto Alice, que vimos nascer e lutar para se tornar um ser deste mundo.
Alice tem a sua chance. Ela conseguiu escapar dos urubus em terra. Mas a jornada pela água mal começou. Se escapar dos tucunarés, das piranhas e de outros peixes que a esperam logo adiante, como se estivessem numa fila de restaurante de firma, se escapar dos jacarés, se escapar dos pássaros de bico comprido, se encontrar um bando de fêmeas adultas para lhe servir de carapaça, Alice um dia voltará ao Tabuleiro do Embaubal para botar os ovos de suas filhas. E, como sua mãe, também será caçada de forma persistente pela fera que é humana.
Alice desaparece na água para viver. Poderá ser apenas um segundo - ou mais de um século.
Esta reportagem faz parte de série especial publicada simultaneamente no site Amazônia Real.