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Coluna
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Uma viagem de volta ao Cariri

Montego Bay cheira a maconha, Paris a crepe, Amsterdã a waffles, Lisboa a sardinha, Madri lembra tapas, mas nada supera o pequi da minha terra

Família Xico Sá no Cariri.
Família Xico Sá no Cariri.Arquivo Pessoal
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Só volto ao meu Cariri na primeira baciada de pequi. O mercado do Pirajá, em Juazeiro do Norte, festeja o começo da colheita da Chapada do Araripe — mais importante do que qualquer notícia ou ação em alta na Bolsa de Valores.

No Pirajá, a exemplo de todos os mercados populares, a economia vai a redemoinho a cada intervenção da mãozinha invisível do Temer. “Vade retro, tinhoso”, alardeia um feirante, ao ouvir o presidente no rádio. No Ver-o-peso (Belém), Encruzilhada (Recife), São Joaquim (Salvador), no varejo e no atacado, nos secos & molhados, a assombração é a mesma.

E chega de notícia ruim no crepúsculo deste 2017. A boa nova do pequi se espalha no Cariri e encobre até o eco aterrorizante da fala presidencial natalina. “Te esconjuro, Capirôto”, berra o macho-jurubeba do açougue.

Alvíssaras, camaradas! No baião de dois, o cheiro do pequi vale por mil madeleines do escritor Marcel Proust: instiga a memória de uma vida inteira, em ritmo de repentista.

O cheiro do pequi espanta o raio gourmetizador a léguas de distância. A frutinha vai bem em tudo: no mungunzá salgado, na galinhada, às favas, feijão-andu, mocotó, na buchada-de-bode da tia Orema e até na moqueca de maridos das lendas indígenas. Nem vou citar as propriedades afrodisíacas da Caryocar brasiliense Camb. Do Crato a Bodocó, é um pequizeiro só.

Assim como Montego Bay (Jamaica) respira maconha, Paris cheira a crepe e croissant, Amsterdã a waffles, Edimburgo a extrato de malte de cerveja, Lisboa a sardinha e Madri lembra suas tapas — jamón, jamón! —, o Cariri cheira a pequi de dezembro a fevereiro, pelo menos. De Juazeiro a Potengi, do Jardim Altaneiras, de Barbalha ao Assaré de Patativa. Até a Euroville, uma utópica miniatura do Velho Continente em pleno oeste do sertão caririense, respira a cultura pequizeira. Tudo com muito cominho, óbvio, outro aroma regional capaz de fisgar até o nariz do russo Nikolai Gógol.

Minha Irene, aos dez meses, é novíssima apreciadora da fruta-tempero. Uma mamada na teta e uma roidinha de leve no caroço do pequi do Araripe. Eis a sustança divina. Embora o culto ao pequizismo seja uma religião caririense, óbvio que a riqueza também é encontrada no Piauí, Maranhão, Goiás e Minas, com fartura.

Com cheiro de pequi nas narinas, qual um Proust do Crato, relembro um mantra que o escriba cearense Dafne Sampaio imortalizou nos muros de São Paulo: “Menos mimimi, mais Cariri”.

Tudo ainda é tal e qual

Podemos falar tudo sobre 2017, menos dizer que foi um ano que passou voando. Para esta safra, o velho clichê da sensação cronológica não vale. Este quase finado 2017 durou uma década. Que 2018 nos seja leve. Aqui em casa, com Larissa, Irene, Teodoro e o gato preto mais lindo da zoologia fantástica, a virada é sob o signo dos Doces Bárbaros:

“Alto astral, altas transas, lindas canções

Afoxés, astronaves, aves, cordões

Avançando através dos grossos portões

Nossos planos são muito bons.”

Xico Sá é autor de Big Jato (Companhia das Letras), Os machões dançaram (Record) e A pátria em sandálias da humildade (Realejo), entre outros livros.

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