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Coluna
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A ira que vem das urnas e paralisa Governos

Uma doença está atacando o sistema democrático e a causa é clara: quase dez anos depois da Grande Crise, ignoramos a hecatombe social que ela gerou

Beatriz Sánchez, candidata à presidência do Chile pela Frente Ampla, que teve votação surpreendente, mas não passou ao segundo turno.
Beatriz Sánchez, candidata à presidência do Chile pela Frente Ampla, que teve votação surpreendente, mas não passou ao segundo turno.REUTERS

Não se sabe com certeza em que momento exato a silenciosa maioria social se transformou em uma massa furiosa e estridente. Não há um antecedente claro dos processos que foram acumulando frustração, desespero e até ódio nas disputas eleitorais, mas fica patente que se impôs a ideia de que, embora se perca, pode-se impedir que o adversário governe.

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Quando se observa o leque político mundial e as recentes eleições em vários países, podemos encontrar um fenômeno que afeta até a Alemanha de Merkel –uma das nações mais poderosas do planeta, que controla a União Europeia– porque o regresso dos nazistas ao Bundestag depois das eleições de setembro se deve à fúria dos eleitores, ao desacordo com o sistema e à descrença na capacidade de autorregeneração da democracia.

Passaram-se várias semanas desde que a chanceler (primeira-ministra) alemã se impôs nessas eleições e a Alemanha continua sem Governo porque, como acontece com tantos Executivos fracos, não pode consolidar suas políticas, mas tampouco pode frear o voto da raiva.

O último caso foi o primeiro turno das presidenciais do Chile, onde, uma vez mais, as pesquisas falharam. Pensava-se que, depois do fracasso do Governo de Michelle Bachelet, desencadeado por várias razões, entre as quais os escândalos de corrupção familiar, o claro favorito, embora por pouco, fosse o bilionário Sebastián Piñera.

No entanto, como aconteceu na Espanha com o Podemos, nos Estados Unidos com o sucesso do reality show de Donald Trump e com o triunfo do “Brexit” no Reino Unido, ninguém contava que a Frente Ampla, representada por Beatriz Sánchez, uma jornalista sem experiência, apoiada pelos jovens, pela raiva, o desencanto e o desencontro da sociedade com seus Governos, se situasse como a terceira força política no Chile, com 20,27% dos votos.

Nesse contexto, o caso espanhol merece uma menção independente. Não só porque o Podemos se consolida como uma nova força política, sobretudo nas últimas eleições gerais, vencidas por Mariano Rajoy, mas porque a falta de convicção de uma parte da população espanhola no sistema não se explica sem fenômenos tão graves como o separatismo catalão, que voltará às urnas legítimas em 21 de dezembro.

Não é que um fantasma percorra a Europa. Trata-se de uma doença que está atacando o sistema democrático e somente nos dedicamos a tentar entender os efeitos, desconsiderando muitas vezes as causas. Em minha opinião, as causas estão claras: quase dez anos depois da Grande Crise não foram feitos ajustes no sistema, e seus responsáveis, muito diversos, ficaram sem punição, ignorando a hecatombe social posterior a que a ruptura do contrato social conduziu. Resultado: multiplicação dos problemas e confusão de diagnósticos enquanto o doente não melhora.

A democracia depende de muitos fatores e talvez o menos importante seja o mero fato de depositar o voto porque, se não foram exercidos previamente os valores e direitos sociais, o ditame das urnas já nasce desqualificado ou é usado por aqueles que simplesmente não sentem a necessidade de mudar o sistema em seu conjunto.

Não quisemos olhar para trás nem abrimos nem fechamos os balanços que marcam a diferença entre o século XX e o XXI. É verdade que uma das características principais destes tempos consiste em que os donos do planeta não têm nenhum programa econômico nem social, só têm brinquedos em forma de “software” com os quais controlam as principais bolsas de valores e que lhes dão um poder que não sabem usar.

Mas também é verdade que o sistema já não é sistema, nem o político, nem o econômico, nem o social, e agora pretende virar a página de uma catástrofe como a de 2008 sem arcar com quase nenhum custo ou, de qualquer modo, que esse preço seja pago pelos cidadãos.

Estamos nos concentrando em explicar o quê, mas quase ninguém parece se importar com o porquê. Por isso, a cada vez temos mais Governos que, para além de serem representações de atos democráticos, terminam por se transformar, em vista do desacordo de uma grande parte da população, em uma manada de administradores medíocres em meio a uma realidade muito dolorosa.

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