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Coluna
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Gilmar Mendes e a síndrome de Estocolmo invertida

O que acontece com o magistrado do Supremo Tribunal Federal? A pergunta é feita por pessoas nas ruas

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federa, alvo de questionamentos nas ruas
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federa, alvo de questionamentos nas ruasRoberto Jayme (Ascom/TSE)
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O que acontece com o magistrado do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes? A pergunta é feita por pessoas nas ruas, psicanalistas, bem como por mais de um de seus colegas de toga. Ao saber, por exemplo, que sou jornalista, enquanto esperava um ônibus, um senhor de meia-idade que nem se lembrava muito bem do nome do magistrado me perguntou, sem muita sutileza, o que eu pensava “desse juiz que solta os corruptos importantes, é contra a Lava Jato e defende o trabalho escravo".

Diante de algumas das atitudes do juiz em relação a seus próprios colegas, ou contra a Procuradoria-Geral, ou diante da superioridade que mostra na hora de opinar, há quem pense que poderia estar sofrendo da síndrome de Hubris, descrita pelo britânico David Owen, que pode afligir aqueles que exercem o poder. Trata-se de "um comportamento irresponsável, próximo à grandiosidade e ao narcisismo", escreve o psiquiatra espanhol Manuel Franco. Na Grécia Antiga, a deusa Nêmesis era a responsável por punir "os excessos daqueles que sofriam, dentro do poder, de uma complacência pessoal exagerada".

Não acredito, no entanto, que Gilmar Mendes esteja acometido pela síndrome de Hubris, uma vez que esta normalmente afeta personagens bastante medíocres, que precisam se revestir até mesmo dos atributos divinos para compensar sua pequenez. O magistrado goza de uma boa biografia profissional e de um conhecimento jurídico inquestionável, a tal ponto que alguns de seus colegas do Supremo o consideravam -- ainda hoje? -- seu mestre. O que talvez aflija Gilmar Mendes, segundo um psicanalista brasileiro que me pede anonimato, poderia ser a síndrome de Estocolmo, mas invertida. É a síndrome em que geralmente há uma estranha identificação do sequestrado com o sequestrador, da vítima com o verdugo. Só que, no caso do magistrado, essa síndrome ocorre ao contrário. Na metáfora, Gilmar Mendes, que deveria ser o juiz que condena, é quem se sente, por sua vez, identificado e grato aos condenados. Sente pena deles. Sofre em vê-los na prisão.

Mas com uma particularidade: Gilmar Mendes, neste caso, não parece se identificar com todas as vítimas igualmente, e sim apenas com políticos ou empresários importantes, por quem sente tanta compaixão que prefere não os ver sofrer na prisão. Somente no Rio, o juiz libertou oito presos importantes. E sente uma espécie de desassossego sempre que a Procuradoria pede, por exemplo, a prisão de um político. Esta semana, voltou a criticar as delações premiadas, tão temidas pelos corruptos.

O que talvez mais incomode a opinião pública é que Gilmar Mendes não parece sentir essa possível síndrome de Estocolmo invertida em relação aos milhares de presos comuns, os sem história e sem poder, muitos dos quais não só ainda não foram condenados, mas também nem sequer julgados ou interrogados, e que continuam amontoados e esquecidos nas cadeias. Prisões tão violentas e desumanas que José Eduardo Cardozo, então ministro da Justiça de Dilma Rousseff, disse a repórteres que preferia a pena de morte a estar preso em uma delas. Com esses presos comuns, a estranha síndrome de compaixão de Gilmar Mendes parece não funcionar.

Em uma entrevista recente a este jornal, o escritor britânico Salman Rushdie, autor dos famosos e polêmicos Versos Satânicos, afirmou que "somos governados pelo grotesco" e acrescentou que "quando chegamos ao poder, tudo se torna uma caricatura". Estava se referindo à tendência atual em quase todo o mundo de rejeição à antiga forma de governar. Também seria o caso do Brasil?

Nas ruas, começa a surgir o alerta de que também poderíamos estar vivendo no Brasil esse estado em que se destacam o grotesco e a caricatura. A pergunta é feita por todos aqueles que, vendo como o desconcertante magistrado atua, suspeitam, como o fiel Marcelo na tragédia de Hamlet, a famosa obra de Shakespeare, de que "há algo de podre no Reino da Dinamarca". Neste caso, onde parece não cheirar rosas seria em Brasília, não só na ágora gritante do Congresso, mas até no templo sagrado dos supremos de toga.

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