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Ainda são uma incógnita os motivos que levaram adolescente de 14 anos a atirar em sala de aula

Em conversa com o EL PAÍS, estudantes relembram histórias do menino que matou colegas em Goiás

Movimentação após os tiros no Colégio Goyases, em Goiânia, no dia 20 de outubro
Movimentação após os tiros no Colégio Goyases, em Goiânia, no dia 20 de outubroO POPULAR (AFP)
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Um menino reservado, por vezes incompreendido em suas brincadeiras. O adolescente J.C.M, 14 anos, é assim descrito por quem conviveu com ele na escola. Protagonista de um drama para si e para os que foram atingidos no último dia 20, ainda é uma incógnita os motivos que o levaram a pegar a arma da mãe policial, e atirar contra seis colegas, – matando dois, e ferindo quatro. O EL PAÍS conversou com diversos estudantes que conviviam com J.C.. Eles puxaram memórias do convívio com o adolescente que hoje ganham proporção diante do desfecho trágico.

Em dezembro do ano passado, por exemplo, a turma se descontraía quando o J.C. parou rente à carteira de uma colega de turma do 7° ano. Ele mostrou uma suástica – símbolo do nazismo – que desenhou na contracapa do caderno e perguntou o que a menina achava. Ela deu de ombros, dizendo que não gostava. “Ele disse muito bravo mesmo que ia entrar na minha casa e matar meu pai e minha mãe”, lembra ela, que teve de tomar remédios para dormir nos últimos dias. “Ele falava isso para todo mundo, mas a gente achava que era brincadeira”, diz. Não era.

Segundo os colegas, J.C.M. tinha um humor que oscilava. Ele gostava de jogar RPG, jogo de interpretação de papéis, no recreio, principalmente com João Vitor Gomes, que acabou sendo alvejado na cabeça e morreu na hora. Os dois, com outros colegas, estavam tranquilos no dia do massacre. Eles já tinham terminado o trabalho de Ciências que apresentariam no dia seguinte, na 20° Mostra de Ciências do Colégio Goyazes.

Nada de estranho havia ocorrido no terceiro andar, na sala do 8° ano, de cinco fileiras com seis alunos em cada, naquele dia. Mas quatro dias antes, na terça-feira, João Pedro Calembo, que se sentava atrás de J.C., o cutucou. Disse que ele “estava fedorento” e que deveria passar um desodorante e lhe entregou um frasco. O adolescente riu timidamente, borrifou nas axilas e devolveu para Calembo.

Para o delegado que preside o inquérito, Luiz Gonzaga Filho, o adolescente disse que Calembo o “amolava muito”. É que Calembo não se preocupava com o jeito fechado do vizinho de carteira e dos avisos de alguns amigos para não fazer brincadeiras com ele. “Meu filho não faria nenhuma brincadeira para machucar alguém, ele era uma criança”, afirma o pai, Leonardo Marcatti Calembo, que vive o luto pela perda do filho, uma das vítimas de J.C.

Outro episódio é lembrado por pessoas que foram atingidos pela tragédia. Em uma feira literária na escola, o adolescente levou um livro de capa preta, com um “S” em relevo, e dizia que tratava do satanismo, algo que assustou a turma. Tudo foi visto como excentricidade pela professora de Língua Portuguesa.

Mas aquilo incomodou João Pedro. Chegou em casa e comentou com o pai, publicitário e presbítero da igreja Batista Renascer sobre o tal livro de um dos colegas de turma. Ele, no entanto, pediu ao filho para que orasse pelo colega e que “Deus lhe ajudaria a conhecer a Verdade”. “Meu filho já chegou em casa comentando que ele era satanista, ateu, não acreditava em Deus mesmo. Pedi que orasse por ele”, lembra Leonardo.

Fernão Queiroz é um dos melhores amigos de J.C., como era de João Vitor. E nunca percebeu nada diferente. “Poucos dias antes de ele atirar na nossa turma, ele foi lá na minha casa. A gente não imaginava que ele ia fazer isso, a gente conversava, ria. Único dia que me lembro de bullying foi o dia do desodorante”, contou.

Mas havia quem o temia. “A gente brincava um com outro, sem maldade. Mas evitava brincar com o J.”, contou Hyago Marques, de 13, atingido por um dos tiros de J.C.. Seu pai, Thiago Barbosa Gomes, levou o filho e outra colega alvejada, Marcela Rocha Macedo, 13, ao hospital no dia do fatal incidente. “Cerca de dois meses atrás a gente estava no recreio e o atirador desenhou aquele símbolo do nazismo – qual o nome mesmo? – com um giz branco no chão, entre as duas pernas. Ele estava sentado, muito calado”, recorda-se Hyago. “Eu não brincava com ele de jeito nenhum porque ele falava muito em matar”, completa. Hyago também foi ferido no dia da tragédia. “Ele está com a bala alojada na vértebra. Tirar, ou melhor, tentar tirar é mais perigoso”, conta.

A 15 minutos andando do Colégio Goyases, no bairro ao lado, Jardim Brasil, uma rua escura. Dos três postes de energia da rua de uma quadra, apenas um tem lâmpada funcionando. O breu é amenizado pela luz que perpassa os portões de grades, ou refletores que acendem quando passa alguém, às 22h. Reformada há seis meses, a casa dos pais de J.C. é ampla. Os largos portões brancos têm algumas aberturas. É possível ver uma enorme garagem, àquela hora, iluminada pela televisão e com eco do som da tevê.

Antes de a reportagem chamar, Divino Aparecido Malaquias, pai do jovem, aparece na porta, do lado de dentro. “Não estamos em condições de esclarecer nada, apenas esperar que tudo se resolva”, disse o major da PM goiana, voltando-se para dentro de casa, puxando as cortinas colocadas depois da tragédia.

Uma vizinha entrava em casa e evita a reportagem. “Não posso dizer nada mais do que a família é muito discreta. Eu quase não via o filho deles.” O que é de praxe de um casal de policiais militares: Malaquias é um experiente policial. Comandou batalhões, ações ostensivas e desarticulou quadrilhas na capital goiana. Pelos feitos, recebeu medalhas de honras ao mérito. Agora, enfrenta a dor de ver o filho detido num Centro de Internação de adolescentes infratores de Goiânia. Na delegacia, ele informou que J.C. aprendeu a utilizar armas pela internet. O delegado ainda não confirmou o que encontrou no computador do jovem que foi apreendido. Contou, contudo, que o adolescente admitiu que pensou em se matar.

A advogada de J.C., Rosângela Magalhães, esteve quatro vezes com ele antes de ser encaminhado pelo Juizado da Infância da Juventude ao centro de internação. “Ele está muito arrependido, principalmente por ter matado um dos melhores amigos”, disse.

Rosângela é advogada da Associação dos Oficiais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás, portanto, defende muitos PMs autores de crimes. “Fui procurada pelo pai dele, o major Malaquias”. A advogada atuou em casos de repercussão nacional, como o Caso Pedrinho – o menino Pedro Braule Júnior, sequestrado por Vilma Martins em 1986 – e do capitão da PM goiana, Augusto Sampaio, que acertou o estudante Matheus Ferreira com um cassetete no rosto durante um protesto em Goiânia deixando-o em coma por dias.

A defesa quer usar sua reputação para evitar que o adolescente seja alvo, por exemplo, de represálias de menores, muitos dos quais apreendidos pelo pai do adolescente. Ela reconhece: “É muito chocante para todos os lados. Nada justifica ele ter disparado, mas é preciso entender o que levou a isso tudo.” Sobre diálogos com o adolescente, ela diz que ele não fala muito. “Está muito calado, abatido”. Muito do que soube, ela conseguiu em conversas com as psicólogas da Delegacia de Apuração de Atos Infracionais, para onde foi levado depois do crime. “Durante o período em que esteve lá, eu pude conversar come ele por dez minutos apenas”, destaca.

Agora, a defesa, que tem viabilizado diálogo com o Judiciário para garantir a integridade física do adolescente, aguarda intimação do juiz. “E vamos aguardar o laudo técnico, de psiquiatras. Tem muita gente fazendo diagnóstico à distância, apenas pelo que foi divulgado pela mídia”, critica.

Perto da casa dos pais, na mesma quadra, o avô paterno do adolescente, Olair Malaquias, estaciona uma caminhonete vermelha em frente a uma casa simples, com grades cor em vinho. “Parece que estamos na escuridão. Não entendemos nada até agora. Um clima muito pesado”, disse, antes de ser interrompido pela avó do menino, carregando uma toalha de rosto dobrada. Os olhos dela encharcados: “Vocês [imprensa] estão brincando com coisa séria. Coisa muito séria”. A dor das vidas destruídas ainda tem espaço para algumas surpresas de quem não endureceu com a vida. Os colegas de J.C. no Colégio Goyases ensaiaram escrever uma carta para ele, mas a unanimidade era de que não adiantaria, como disse uma colega: “não vai mudar em nada os pensamentos dele”.

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