Mordendo o próprio rabo
Ao contrário do que advogam os entusiastas do autoritarismo, o período militar não conheceu estabilidade política
O legado mais trágico da institucionalização da corrupção no Estado brasileiro – em todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), em todos os níveis (federal, estadual e municipal) e abrangendo todas as cores ideológicas, sem exceção – é a descrença da população em geral no regime democrático. Assistimos, impotentes, a defesa de governos autoritários e o fortalecimento do discurso da intolerância. E, apáticos, vemos, um a um, desabarem os pilares que sustentavam nossos sonhos de justiça, harmonia e liberdade.
O cantor e compositor sertanejo Zezé Di Camargo, que junto com seu irmão Luciano, com quem faz dupla, detém uma das maiores fortunas do meio musical brasileiro, calculada em R$ 500 milhões, declarou ao canal de Youtube da jornalista Leda Nagle que o Brasil nunca teve uma ditadura. Segundo ele, nós vivíamos um “militarismo vigiado”. E, após relativizar as torturas e as mortes sob o regime dos generais – “não chegou a ser tão sangrento assim” –, ele defendeu a volta do “militarismo” para “reorganizar a coisa” e “entregar de novo” o poder aos civis.
O deputado federal Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército e pré-candidato à Presidência da República, encarnando esse ideário de “valores” da ditadura, vem contabilizando um impressionante crescimento de intenção de voto. Conforme pesquisa do instituto DataPoder360, realizada nos dias 9 e 10 de julho, Bolsonaro já conta com 21% das intenções de voto, contra 26% do pré-candidato petista, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A nostalgia por um regime de forças, algo impensável há algum tempo, vem se tornando raciocínio bastante comum nos mais diversos meios sociais.
Bolsonaro ocupou recentemente o microfone da Câmara dos Deputados para criticar o seriado da TV Globo, “Os dias eram assim”, cujo enredo passa-se nos anos 1970, chamando-o de “farsa” e “mentira”. Ele só faltou pedir a suspensão do programa, em nome da “verdade” e da “pátria”, passo, no entanto, dado pelo Movimento Brasil Livre (MBL), seção do Rio Grande do Sul, que conseguiu fechar a mostra “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira”, que estava em exposição no Santander Cultural, em Porto Alegre, em nome da moral e dos bons costumes.
A coordenadora do MBL no Estado, Paula Cassol, condenou a exposição por, segundo ela, fazer apologia à pedofilia, zoofilia e pornografia. A mostra, que propunha uma reflexão sobre gênero e diversidade sexual, reunia 273 obras de 90 artistas brasileiros, entre os quais Ligia Clark, Candido Portinari, Alfredo Volpi e Adriana Varejão. Embora não tenha visitado a exposição, Paula Cassol afirmou que “isso não é arte”, e liderou a pressão contra o banco, que acabou cancelando a mostra. Também a Arquidiocese de Porto Alegre se manifestou, em nota oficial, denunciando a exposição por utilizar “de forma desrespeitosa símbolos, elementos e imagens, caricaturando a fé católica e a concepção de moral que enleva o corpo humano e a sexualidade como dom de Deus”...
No dia 19 de março de 1964, dia de São José, padroeiro das famílias, um grupo estimado entre 300 e 500 mil pessoas, lideradas pela Igreja Católica, realizou em São Paulo a chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Replicadas em várias partes do Brasil, essas marchas, que contavam com apoio de diversas organizações civis e classistas, e que visavam combater “o ateísmo comunista”, restaurar a ordem e restabelecer a moral, encorajaram o golpe militar que nos sentenciou a 21 anos de obscurantismo.
Ao contrário do que advogam os entusiastas do autoritarismo, o período militar não conheceu estabilidade política. A cada sucessão brigavam entre si os vários setores das Forças Armadas para fazer prevalecer seus interesses: golpe de 1969 que guindou o general Garrastazu Médici ao poder; rebelião de militares linha dura contra o general Ernesto Geisel; pacote de Abril de 1977 que sufocou a oposição; rebelião de militares linha dura contra o general João Figueiredo. Também não foi um tempo de estabilidade econômica: a inflação média era de 20% ao ano (contra 7,5% ao ano no período democrático, não contando o governo de transição de José Sarney), e ultrapassava os 200% ao ano quando devolveram o poder aos civis. Além disso, a corrupção grassava nas mais de 500 empresas estatais existentes, que incluíam siderúrgicas, bancos, rádios, refinarias, etc.
Durante o período militar, censores profissionais definiam o que era ou não era arte, o que podia ou não podia ser publicado, visto ou ouvido. Durante o período militar, qualquer um podia parar na cadeia e ser torturado ou até morto por manifestar opinião divergente. Durante o período militar estavam proibidas manifestações de rua. Os militares destruíram os sistemas de educação e saúde e ampliaram o fosso entre ricos e pobres. Mas, principalmente, os militares forjaram a geração que manda hoje no país, contra a qual se insurgem aqueles que defendem... a volta da ditadura militar...
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