Chega ao fim o ‘Buenos Aires Herald’, único jornal que denunciou as desaparições em plena ditadura argentina
Periódico inglês, que completaria 141 anos, caiu nas mãos de um empresário próximo aos Kirchner
Para os jornalistas e os que lutam pelos direitos humanos argentinos, o Buenos Aires Herald era um mito. Por isso, seu fechamento definitivo, anunciado na segunda-feira, após 140 anos de publicação ininterrupta, foi um duro golpe. Em plena ditadura militar (1976-1983), este centenário jornal em inglês, que nasceu em 1876 para informar a numerosa e pujante comunidade britânica da Argentina – comerciantes, industriais, fazendeiros, construtores de ferrovias – era o único que ousava denunciar todos os dias o terrorismo de Estado que deixou milhares de desaparecidos.
Os jornais argentinos, pressionados pela ditadura, ocultavam crimes de lesa-humanidade. E os jornalistas do Herald, em especial seu diretor, Robert Cox, e seu braço-direito, James Neilson, literalmente arriscavam a vida para contar o que faziam aqueles Ford Falcon que levavam as pessoas das suas casas para nunca mais voltar. A ditadura não queria que isso viesse à tona, e muitos argentinos tampouco queriam saber. Mas o Herald não ficou um único dia sem contar as atrocidades, apesar das ameaças que obrigaram Cox a abandonar o país e deixar a publicação nas mãos de Neilson e de uma pequena redação de corajosos.
“Sempre me perguntava como os nazistas puderam assassinar sete milhões de pessoas na Alemanha sem que a sociedade fizesse alguma coisa. Tive a resposta na Argentina. As pessoas não queriam saber o que estava acontecendo. Mas o dever do jornalista é informar, e foi o que fizemos. Sinto-me orgulhoso, tenho amigos que se salvaram porque seu nome saiu no Herald e por isso não foram mortos”, recorda Cox, hoje aposentado, em sua casa em Charleston (EUA). Ele ainda passa vários meses por ano na Argentina.
“Nunca trabalhei para um jornal tão corajoso. Pequenino, mas muito lutador. É um dia triste. Sempre me sentirei orgulhoso de ter trabalhado naquela época no jornal. Neilson voltava para casa todo dia por um caminho diferente. Podiam matá-lo a qualquer momento. Não há como descrever o quão valentes eles foram”, afirma John Carlin, jornalista do EL PAÍS que morou na Argentina e iniciou sua carreira no Herald em plena ditadura. Fazia de tudo, mas também histórias de desaparecidos. Como os colegas, também recebeu ameaças. “Mas nada comparado ao que Cox e Neilson sofreram”, recorda.
A ditadura pressionou, deteve Cox durante um tempo e conseguiu que ele saísse da Argentina ameaçando seu filho. Mas o regime nunca se atreveu a fechar o jornal. O fato de ser em inglês, e portanto com uma difusão limitada – embora alguns editoriais fossem traduzidos ao espanhol para gerar mais impacto – e contar com um editor dos Estados Unidos, país com o qual os ditadores queriam ter boas relações, salvou o Herald e permitiu que chegasse às bancas todo dia com histórias que ninguém mais ousava contar.
“O editor, que era da Carolina do Norte mas estava apaixonado pela América Latina, sempre me apoiou. Os meios de comunicação argentinos silenciaram sobre tudo. Um dia, pouco depois do início da ditadura, me levaram para ver [o ditador Jorge Rafael] Videla, que se mostrou muito cordial. Disse-me: ‘Os outros jornalistas entendem a situação. Não sei por que vocês não.’ Havia lá um repórter do La Prensa que me disse: ‘Devemos entender que talvez seja preciso fazer coisas não muito agradáveis’. Eu disse a Videla: ‘Mas os sequestros continuam, as pessoas estão desaparecendo, nosso dever é informar.’ Não me respondeu, mas era evidente que teríamos muitas dificuldades”, recorda Cox.
As mães dos desaparecidos recorriam à imprensa argentina, e alguns jornalistas recomendavam que procurassem “os loucos dos ingleses, que publicam tudo”. Cox lembra que, em seus 140 anos de história, o Herald sempre defendeu valores democráticos. Nos anos trinta, quando tinha um grande rival também em inglês, o The Buenos Aires Standard, este se colocou do lado dos nazistas e o Herald, dos aliados. O Standard fechou em 1954.
“O Herald mostrou a importância do jornalismo em momentos difíceis. Agora nos EUA, com Trump, vemos que a imprensa é fundamental. Na Argentina existem jornalistas muito bons, mas o problema são os donos. O Herald fez um bom jornalismo até o final, mas tinha donos ruins”, afirma Cox.
O começo do fim do Herald veio quando ele deixou de estar em mãos estrangeiras, o que lhe havia dado uma grande independência. Em 2007, foi comprado pelo argentino Sergio Szpolsky, empresário da comunicação próximo aos Kirchner. Finalmente acabou nas mãos de Cristóbal López, também próximo ao kirchnerismo, que tem fechado vários veículos desde o fim do mandato de Cristina Fernández de Kirchner, sua grande aliada.
Depois de várias crises e tentativas de mantê-lo em formato digital, o Herald, um ícone que nasceu pouco depois do histórico La Nación, apagou-se definitivamente na segunda-feira. E, com ele, boa parte da história gloriosa do jornalismo e da luta pelos direitos humanos na Argentina.
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