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Coluna
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Mundo ‘fake’

Na era da pós-verdade, política e sociologia nadam em mar de confusões, inclusive a do sentido comum

O presidente Donald Trump discursa em Iowa.
O presidente Donald Trump discursa em Iowa.Charlie Neibergall (AP)
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Devemos a Donald Trump e aos seus a propagação de uma estranha tendência, velha, mas com nova denominação: as ”notícias alternativas” (“fake news”), também conhecidas como “pós-verdade”, em resumo, tudo aquilo que o magnata não gosta ou que não lhe caia bem. Sua negação ou tergiversação da realidade começou a ser uma constante desde sua própria cerimônia de posse que contou, como demonstram as fotografias, com menos presentes do que as de Obama em 2009 e 2013, apesar de ele ter afirmado que as imagens tinham sido manipuladas. À época, deveríamos ter aprendido que seria apenas o começo e seria a marca da casa.

Goebbels nos ensinou que uma mentira repetida mil vezes acaba se transformando em uma verdade. Os meios de comunicação vivem hoje uma situação esquizoide e são um pouco como o paranoico a que perseguem: já não contam como antes, tudo é relativo, depende do ponto de vista ou da ideologia de cada qual, e o que consideram negativo tem melhor recepção entre as pessoas do que os valores democráticos.

Estamos por acaso ante uma crise geracional? Ou ante uma crise entre a realidade e a ficção? Em um novo mundo ou em um falso? Me assusta a desfaçatez dos que se atrevem a negar a realidade porque, no fim das contas, pertenço a uma geração que uma vez se atreveu e foi capaz de romper o inimaginável. Por essa razão, sempre mantive que cada geração tem o direito de se equivocar.

A herança que Trump está deixando ao mundo, essa nova maneira de viver à margem da realidade, ajustando-a ou negando-a, teria dado nos tempos de Freud material abundante para a análise e vários milhares de livros. No entanto, nesse século XXI onde impera a tecnologia, o reino do Twitter e o universo do Facebook, só é uma expressão das profundas mudanças que estão sendo gestadas nestes tempos.

Trump utiliza as armas de gerações anteriores para atacar a realidade e chamar de mentirosos e falsos todos aqueles que apresentam dados ou informações que não lhe convém. E depois está uma nova geração que salta por cima de tudo isso e vive rompendo os limites.

Ao final, tanto os que se vão como os que chegam são escravos da tecnologia. Já não há um mundo no The New York Times ou no EL PAÍS, já não há um mundo em outros jornais porque ninguém pôde imaginar, nem em seus mais incríveis sonhos, que os meios de comunicação perderiam o domínio e a distribuição da informação para o Facebook.

Enquanto isso, há sim uma verdade indiscutível. A imprensa e aqueles que vivem observando o que acontece ao nosso redor já não têm o monopólio da autoridade, de ditar o que é bom e o que é ruim. Pode se discordar do comportamento de um político ou do programa de um partido, mas o que não se deve fazer é negar seu direito ao erro e condená-lo porque não concorda com o que pensamos.

Não podemos negar aos demais o direito que nós algum dia exercemos ao romper as barreiras e os limites e ir além do horizonte. E, ainda que não se consiga ir tão longe como se esperava, terá valido a pena tentar porque é um direito geracional inapelável.

O problema é que a transição entre o velho e o novo está sendo feita com desqualificações, e não com consensos. A verdade é a verdade como a física é a física e a lei da gravidade estabelece que a maçã cai no chão, ainda que haja bruxos que afirmem que também pode ir para cima. No entanto, muitos – deixando de lado as lacunas geracionais – sabem que as maçãs sempre caíram nas nossas cabeças.

Nestes tempos a política e a sociologia nadam em mar de confusões, a mais importante delas a do sentido comum. De um lado há meios de comunicação que acreditam encarnar a verdade e se atrevem a ir contra a nova realidade e, do outro, há políticos que são capazes de afirmar que são mentiras até as verdades comprováveis.

Neste ocaso dos sistema de expressão tradicionais, não há que se esquecer que a sensatez de um editorial não pode competir com a ditadura dos 140 caracteres, e que sempre mantivemos que os povos, como as baleias, têm direito ao suicídio.

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