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Assim se deu o fracasso da condenação da Venezuela na Assembleia da OEA

Traições, diplomacia do petróleo, ausência dos EUA: os bastidores da tentativa de pressão a Maduro

O secretário de Relações Exteriores do México, Luis Videgaray (à esquerda), e o secretário geral da OEA, Luis Almagro
O secretário de Relações Exteriores do México, Luis Videgaray (à esquerda), e o secretário geral da OEA, Luis Almagro Mario Guzmán (EFE)

Tudo corria como previsto. Os discursos dos diplomatas pareciam apenas a tediosa sala de espera de uma condenação sem precedentes contra o Governo da Venezuela na Organização dos Estados Americanos (OEA), o organismo mais crítico em relação ao chavismo na região. Os 23 votos necessários pareciam garantidos quando El Salvador tomou a palavra.

− Em nome da democracia, que haja um intervalo, um recesso, o que seja.

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O pedido do chanceler salvadorenho, Hugo Martínez, foi acatado entre os olhares melancólicos de alguns ministros. A reunião de chanceleres se interrompia por 45 minutos. A derrota estava consumada.

O México tinha preparado o terreno para chegar à Assembleia Geral e sair vitorioso. Em 31 de maio, os chanceleres da OEA adiaram sua reunião em Washington para tentar chegar a um acordo sobre as duas resoluções em discussão. O texto promovido pelo México e por outros 13 países − os mais capitalistas da região − exigia a libertação dos presos políticos, o fim da violência e a não realização da Assembleia Nacional Constituinte que o chavismo convocou para 30 de julho. O segundo texto, impulsionado pelos 14 países da Comunidade do Caribe (Caricom), era muito mais brando e só pedia o diálogo entre o chavismo e a oposição. Não exigia a libertação dos presos políticos e não fazia nenhuma referência à Constituinte.

A negociação estava em marcha. Pela frente, duas semanas intensas. Era preciso dar um passo além dos pronunciamentos dessa espécie de G-14 e do ativismo do secretário-geral da OEA, Luis Almagro, que anunciou neste sábado que deixará a OEA no dia em que houver “liberdade na Venezuela”. Se conseguisse a aprovação da resolução, o México conquistaria uma grande vitória para sua diplomacia, ausente da América Latina nas últimas décadas. A diplomacia mexicana recorre frequentemente à criação do Grupo de Contadora, nos anos 1980, para recordar os tempos em que seu prestígio internacional lhe permitiu ajudar a obter a paz na América Central.

Logo após o adiamento da reunião de 31 de maio, começaram as negociações, segundo a reconstrução desse processo feita com base na versão de uma dezena de fontes, incluindo embaixadores, diplomatas de diversos países e membros da OEA. As duas partes concordaram em criar um pequeno grupo de negociadores para agilizar as conversações: Estados Unidos, Brasil e Peru, de um lado, e Barbados, Guiana e Antígua e Barbuda, do lado caribenho. Antes de chegar a Cancún, eles se reuniram pelo menos quatro vezes. O México preferiu não participar diretamente dos encontros. A tensão com o Governo da Venezuela aumentou nos últimos meses. A crise se transformou também em um tema de política interna mexicana, já que o partido governante PRI, do chanceler Luis Videgaray, serve-se dela para atacar o principal candidato da oposição, Andrés Manuel López Obrador, que tem se mostrado brando em relação ao Governo venezuelano. Apesar de não participar, o México se manteve informado sobre o conteúdo desses encontros por meio de seu embaixador na OEA, Luis Alfonso de Alba, um diplomata com mais de 30 anos de experiência.

Até a madrugada de domingo passado, apenas algumas horas antes do início da reunião, as delegações trocaram telefonemas, mensagens e rascunhos de resolução sobre a condenação da Venezuela. O último texto tinha suprimido a menção à libertação dos presos políticos − e, quanto à Assembleia Constituinte, só pedia que se reconsiderasse sua realização. A poucas horas da abertura do encontro, o México obteve “fumaça branca”, como confirmou a vários representantes do G-14 o embaixador de Antígua: “Podem ficar tranquilos”. A diplomacia mexicana tinha conseguido aquilo que era impensável semanas antes: pelo menos 10 países apoiariam a condenação da Venezuela. As possibilidades de superar o mínimo de 23 votos necessários eram muito altas e o México já pensava em obter um resultado contundente, com o apoio de El Salvador.

Enquanto isso, a Venezuela também se mobilizava. Tinha enviado a Cancún uma delegação de quase 20 pessoas, a mais numerosa. Iniciou então sua investida contra a débil diplomacia caribenha, uma soma de ilhas endividadas e dependentes do petróleo bolivariano. A pressão foi total. Delcy Rodríguez, em sua última missão como chanceler, reuniu-se com todas as delegações e conseguiu um encontro plenário da Comunidade do Caribe, algo que não foi concedido ao México.

A fumaça branca foi escurecendo com o passar das horas. A estocada definitiva ocorreu durante a reunião de chanceleres. Depois de horas de discussão, El Salvador pediu um recesso na sessão. Os salvadorenhos alegaram que eles sim, mas outros países − São Vicente e Granadinas, Haiti e República Dominicana, entre outros − não tinham visto o novo texto. A sessão ficou interrompida por quase uma hora.

Na volta, só seis países caribenhos votaram a favor do texto. Outros seis se abstiveram, entre eles Antígua e Barbados, cujo embaixador tinha prometido apoio ao documento horas antes. República Dominicana e El Salvador, dois países que a Venezuela pôs no radar para uma possível mediação com a oposição, também se abstiveram.

A posição do país centro-americano irritou muito o México, segundo vários dos presentes. Os anfitriões se sentiram, de certa maneira, traídos por um país de sua órbita de influência. Alguns dias antes, os mexicanos tinham impulsionado em Miami uma reunião de cúpula entre os países centro-americanos e os Estados Unidos. O México acreditava que o gesto de promover aquele encontro seria recompensado.

Igualmente dolorosa, embora não tão surpreendente, foi a mudança de posição dos países do Caribe. A Venezuela usou sua artilharia diplomática para trazê-los para seu lado. O ás na manga do Governo bolivariano continua sendo o ouro negro. Não serviu para nada o trabalho das semanas anteriores. Nem o fato de o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Julio Borge, em uma recente viagem a Washington, ter tentado convencer alguns desses países caribenhos. “Para vocês não é interessante uma Venezuela que não seja próspera”, advertiu. Não adiantou. O Governo de Maduro nem precisou oferecer mais petróleo, bastou pressionar com a dívida para atrair os amedrontados. República Dominicana, Haiti, Granada e Antígua e Barbados somam mais de 2,1 bilhões de dólares (7 bilhões de reais) em dívidas com a Venezuela pelo fornecimento de petróleo. El Salvador deve mais de 900 milhões de dólares (3 bilhões de reais), segundo informação oficial. “Nunca vi um exemplo de cubanização tão profunda como esta na diplomacia de um país”, afirma um diplomata a par das negociações.

A impotência foi consumada pelos Estados Unidos. A ausência de última hora do secretário de Estado Rex Tillerson foi um balde de água fria. Sua participação, coincidem os diplomatas consultados, inclusive os críticos, poderia ter mudado o panorama. O Governo de Donald Trump decidiu enviar em seu lugar o subsecretário de Estado John Sullivan, confirmado no cargo no final de maio.

Um dos embaixadores consultados resume:

− Os EUA não fizeram seu trabalho. Não havia ninguém do outro lado. Pensar que você pode se somar a um esforço e não incorporar a cavalaria é absurdo.

As dúvidas sobre o interesse e a capacidade que o Governo Trump tem de olhar para a América Latina, além de Cuba ou das provocações dirigidas ao México, ficaram evidenciadas em Cancún. Seu esforço se concentrou em tentar levar adiante a criação de um grupo mediador, com a resolução já derrotada. Esse objetivo também não foi alcançado. Apesar disso, o vice-presidente Mike Pence disse na quinta-feira que os EUA estavam “francamente decepcionados pela falta de ação da OEA na crise da Venezuela”.

As declarações de Pence foram a nota final para a incapacidade, mais uma vez, de um organismo regional de chegar a um acordo ante uma realidade que, dia a dia, há anos, golpeia sem parar. Parece inacreditável, mas 90% do continente não pôde vencer 10% dele. O contínuo vaivém no recinto luxuoso da reunião de Cancún, um balneário do Caribe mexicano, contrastava com as imagens que chegavam das ruas da Venezuela, onde os protestos se aproximam dos 100 dias. Quase 80 pessoas já morreram. Um dia depois da última reviravolta da diplomacia para a Venezuela, um oficial venezuelano matou um manifestante com um tiro à queima-roupa. Era um jovem de 22 anos.

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