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Um doutor da voz contra o preconceito

A voz, esse traço que nos define, mas que não damos importância, é vital para transexuais No Rio, um fonoaudiólogo faz do treinamento vocal uma arma contra a transfobia

Foto e vídeo: Mauro Pimentel
María Martín
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Não importava quanto tempo ela levasse no grupo de tarô do WhatsApp, nem quanto tivesse a dizer a seus amigos virtuais. Amanda Castro, de 27 anos, podia esfolar o dedo escrevendo textos infinitos, mas nunca ia enviar uma mensagem de voz: “Tinha medo de que eles percebessem que sou transexual”. Lea Genefort, francesa de 35 anos, parou de fazer ligações para resolver qualquer burocracia. “Eu dizia ‘meu nome é Lea’, mas em seguida eles me chamavam de senhor”. Patrícia Rodrigues e Maria Eduarda, de 22 e 23 anos, se resignaram a que a van passasse seu ponto, dia após dia, pois não tinham coragem de avisar para o motorista parar. “Sabe quando você vai gritar que você quer descer e tudo mundo vai ficar olhando para você? É constrangedor”, diz uma delas.

A voz, esse traço que nos define, mas que raramente damos importância, é vital para mulheres e homens transexuais que veem seu corpo mudar, mas se sentem delatados ao pronunciar um simples “bom dia”. No Rio, um homem trabalha para que a voz, feminina ou masculina, não se torne mais um motivo de preconceito e seus pacientes não emudeçam mais. O fonoaudiólogo João Lopes já cuidou, em pouco mais de um ano, das cordas vocais, da entonação e da pronúncia de cerca de 40 transexuais, a grande maioria mulheres. “Os homens, por conta do tratamento com hormônios, que já agrava a própria voz, têm menos dificuldade para adaptá-la”, explica o especialista.

“O que mais me chama a atenção é como, depois do tratamento, passam por entrevistas e acabam conseguindo emprego. A sociedade também as recebe melhor, a voz contribui para tirá-las da marginalidade”, diz. Professor de técnica vocal de teatro, a inspiração lhe vem do palco. “No teatro, um homem tem que trabalhar como mulher muitas vezes. Eu trouxe essa arte para o meu dia a dia. E a arte não pode ter preconceito.”

Quartas e quintas a sala de espera do Centro de Saúde da Veiga de Almeida, no centro do Rio, experimenta um vaivém de pacientes, de advogadas a prostitutas, na procura de uma nova voz. A terapia é também renunciar a um traço da personalidade, construído durante toda uma vida, e nem sempre é fácil. “Eu gosto da minha voz”, diz Eleonora Leonardo Faria, futura professora de biologia de 24 anos, ainda com gravidade. “Mas à medida em que fui ficando inteligível como mulher, ela começou a se destacar. Não quero ser mais vista como um animal de zoológico, quero passar desapercebida”.

Recebidas com um beijo e um abraço pela equipe de Lopes, ninguém olha para elas de maneira diferente, uma rara trégua no país que mais mata transexuais e travestis do mundo. Foram 127 vítimas em 2016, uma morte a cada três dias, segundo o Grupo Gay da Bahia.

“O primeiro que as pessoas percebem agora é meu sotaque francês”, conta Lea, que começou o tratamento gratuito há três meses. “Eu vivo com medo, como qualquer pessoa que mora no Rio, mas aqui a transfobia é muito forte. Tem momentos em que sua segurança vai depender de as pessoas não perceberem que você é trans”, explica ela, hoje tradutora após ter trabalhado, antes da sua transição, como engenheiro de computação em Wall Street. “Eu acho que foi aí, quando fui confrontada com o pior do mundo, quando percebi minha transexualidade. Esse mundo era muito homofóbico, maltratava as mulheres e não aceitava fraquezas”.

A voz de Lea é macia e doce e, além de não causar estranhamento mais do outro lado da linha telefônica, tornou-se motivo de aceitação. “Eu posso ter uma voz feminina ou masculina, isso não muda quem eu sou, mas muda completamente como eu sou tratada, de acordo com como eu me sinto”, diz.

Na sala de espera, iluminada com lâmpadas fluorescentes, três pacientes amigas rememoram suas batalhas contra a intolerância. Da noite de Carnaval que passaram na delegacia para denunciar que um segurança as tirou da fila feminina da revista de um show ao sufoco de ir na padaria e comprar algo na frente de todos. “Eu precisava da terapia porque me sinto muito insegura com minha voz, não passo segurança”, explica Patrícia, cuidadora de idosos, às vezes, efetivamente, com um fio de voz.

Amanda se mexe até se encaixar numa das cadeiras plásticas da sala. Mede cerca de 1,90 e reconhece que sua complexão grande e forte tem sido um obstáculo para se sentir aceita –“a feminilidade é sempre associada à baixa estatura”, lamenta. Ela não podia mudar seu tamanho, mas sim sua forma de falar. “Eu queria feminilizar minha voz, chegar a um tom que não me condenasse. No final, o que todas queremos aqui é, de alguma forma, que não olhem para a gente”, diz Amanda, que mora na favela de Cidade de Deus, onde precisou se impor até com violência. “A terapia é para nós mesmas, para completar nossa transição”, explicam, “mas também porque é horrível ter que ouvir ainda que você está com voz de traveco ou sofrer essa transfobia passiva de alguém fazer questão de te tratar no masculino. A voz é uma arma para a gente”.

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