Jesus e Di Cavalcanti encontram-se no Edifício Esther
Primeiro edifício modernista de São Paulo ainda é referência de urbanidade para a cidade que se fecha atrás de muros
A primeira coisa que chama a atenção quando se entra neste edifício com nome de mulher é um tanto trivial: no Esther não há catraca ou controle, e o porteiro, atrás de um balcão com cara de improvisado, não está interessado em saber seu nome e muito menos o número do seu documento. Nada de “o senhor já veio aqui?” ou “já tem cadastro no sistema?” . Não é desleixo. Acontece que o Edifício Esther é de uma época em que o ideal no horizonte era que os prédios fossem um pouco como as ruas deveriam ser: cosmopolitas, convidativas ao passeio, sem barreiras, múltiplas e não seccionadas. Assim, para o porteiro do Esther, se você vai visitar um amigo, cortar o cabelo, fazer uma sessão de massagem, almoçar, jantar ou conversar com seu advogado, dá no mesmo. E há de tudo isso por lá.
Inaugurado em 1938, o Esther foi o primeiro edifício modernista construído em São Paulo, um presságio das novas edificações que surgiriam no centro da cidade – como o Copan e o Eiffel, ambos projetados por Oscar Niemeyer. Instalado na avenida Ipiranga, em frente à Praça da República, a ideia, desde o início, é que ele fosse autossuficiente, com comércio e residência convivendo em um mesmo local, mas que, ao mesmo tempo, abraçasse a rua, oferecendo livre circulação para qualquer passante. Por um momento, ele deve ter sido visto como o futuro incontornável da cidade que mais crescia na América Latina. Mas as coisas acabaram tomando outros rumos. O centro perdeu seu brilho, grande parte das pessoas foi viver em bairros distantes, o modernismo virou história. As ruas se esvaziaram. Por um longo período, o Esther decaiu. Decaiu, mas nunca perdeu seu ar de novidade.
“Sua dinâmica múltipla permanece viva até hoje”, diz a urbanista Sabrina Fontenele. “A multiplicidade está presente na variedade de pessoas que frequentam o edifício, mas também nas diferentes apropriações que apartamentos com a mesma planta têm”, completa. Por exemplo, no quarto andar do edifício, ao lado de um apartamento residencial, é possível agendar um horário para cortar o cabelo com o Jesus Costa. Ele é a cara do Esther. Em um dia comum, enquanto espera os clientes, dedilha seu violão e canta baixinho alguma canção caipira. Conta que desde 2003, quando abriu o salão, sua vida aconteceu basicamente ali dentro. É lá que vive em um apartamento alguns andares acima do salão, foi lá que conheceu sua atual esposa, ali também teve sua primeira filha e agora é também naquele pedaço que está abrindo uma escola de estética em outro apartamento que aluga.
Chegado ao centro de São Paulo em 1970, Jesus já foi o Conde Amado, da dupla caipira que formava com seu irmão mais velho, o Rei Amante. Na época, segundo ele, a carreira dos dois decolava. As evidências do sucesso estão penduradas nas paredes do salão: uma série de LPs gravados pelos dois. Muita coisa não saiu como planejado e ele acabou aprendendo e se dedicando ao ofício de cabeleireiro, tentando conciliá-lo com a música. Recentemente, em outra mudança de trajeto, passou de Conde Amado a Cowboy de Jesus, quando entrou para a Igreja do Evangelho Quadrangular e começou a compor música sertaneja gospel. Agora, ele quer transformar o Jesus Fashion Hair na Barbearia Executivo – seguindo a moda de inaugurações de barbearias na cidade. Jesus tem notado que o Esther (e o centro) ficou cada vez mais movimentado, com um público jovem diferente, por isso é necessário que ele se atualize também. “Vai ter até cerveja artesanal para os clientes que quiserem”, diz empolgado.
Um andar abaixo do salão de Jesus está o escritório de Clemente Aham. Nigeriano, natural de Lagos, maior cidade do país africano, Aham está no Brasil há mais de 10 anos e hoje trabalha como despachante e agente cultural. Em um dia comum, em frente a porta de seu escritório é possível topar com três ou quatro imigrantes africanos esperando para serem atendidos por Aham, que os ajuda nos trâmites burocráticos para obtenção de vistos. Contudo, o que ele gosta de fazer mesmo é promover eventos. Dia 9 de junho, por exemplo, está ajudando a preparar a 1ª edição do Afro Biyou’z, um festival gastronômico musical em um restaurante africano a algumas quadras do Esther.
“O Esther é um bom resumo de São Paulo, em tudo que há de bom e ruim na cidade”, diz Jefferson Keese – que desde 2004 divide seu escritório de arquitetura com a publicação gratuita Mapa das Artes, dedicada à programação cultural da cidade. O que há de melhor no edifício, segundo ele, é a multiplicidade de coisas que acontecem por lá – algo tão difícil de encontrar em outros lugares da cidade. Por exemplo: “Teve uma época em que o consumo de água disparou aqui no prédio porque tinha uma mesquita no nono andar e para rezar é preciso limpar as mãos e pés”. A parte mais difícil é o desrespeito pelo patrimônio. “O prédio já passou por centenas de alterações desde que foi inaugurado. Até um elevador de aço escovado foi instalado no lugar do original por um síndico maluco que não pediu permissão para ninguém”, diz Keese.
História e preservação
A última novidade do edifício – que tem visto cada vez mais escritórios e novos moradores aparecerem por lá – é o restaurante Esther Rooftop, na cobertura do prédio, e a padaria Mundo Pão, que será inaugurada no térreo, de frente para a rua, nesta quarta-feira. Se as novidades trazem um ar renovado para o edifício (há quem diga requintado), elas não são consenso entre condôminos do edifício. O cenógrafo Renato Hofer, um dos 27 moradores residenciais do prédio, é um dos que reclama de uma cobertura de vidro que o restaurante fez e que está alterando a fachada do edifício. “Morando aqui e vendo todas as alterações que o prédio tem passado, além da falta de fiscalização, é difícil acreditar que ele tem um futuro esperançoso quando se fala em preservação”, diz Hofer. Procurada pela reportagem, a assessoria do Esther Rooftop não comentou as reclamações.
Projeto dos arquitetos Álvaro Vital Brazil e Adhemar Marinho, o Esther foi construído originalmente para abrigar a sede da Usina Açucareira Esther, que era localizada no interior paulista. O dono da indústria, Paulo de Almeida Nogueira, viu no edifício a possibilidade de entrar na corrida da verticalização da cidade, que até então era ocupada majoritariamente por construções térreas, e investiu no projeto. A marca da usina, em forma de uma moenda gravada em vitrais, portas e janelas, está até hoje espalhada por todo o prédio que tem uma centena de outras especificidades únicas. Keese é um dos que se maravilha ao mostrar os detalhes – como uma campainha ou o caixilho de uma janela de correr – que ele tentou preservar em seu escritório. “É uma pena que muita coisa tenha se perdido ao longo do tempo. Tudo aqui é único, porque foi construído sob medida para cá”, diz.
“A discussão sobre a preservação da arquitetura moderna tem mais de trinta anos, mas a atribuição de valor das obras no cotidiano ainda não está naturalizada como acontece, por exemplo, no caso de edifícios com um desenho clássico de feições históricas ou monumentais”, diz a urbanista Fontenele, que estuda edifícios modernos em São Paulo. E não é só o valor arquitetônico que precisa ser redescoberto. O subsolo do Esther, que hoje abriga uma boate – também chamada de “inferninho” –, já foi a primeira sede do Instituto de Arquitetos do Brasil e recebeu uma das exposições inaugurais da pintora modernista Anita Malfatti. O prédio, que concentrou boa parte da vida cultural paulistana, também foi residência do pintor Di Cavalcanti. “O que falta é um projeto de restauro para o edifício que o investigue em sua totalidade, que entenda sua importância na história e na paisagem paulistana, que ressalte os aspectos inovadores de seus espaços”, diz Fontenele.
De meados dos anos 1970 aos anos 2000, o Esther passou pelo mesmo processo de degradação que o centro de São Paulo passou. Se ele era aberto para os passantes, a cidade se fechava; se a região central perdia seu lustre, ele também. Desde o início dos anos 2000, contudo, a decadência – senão de preservação, mas ao menos de ocupação – tem sido revertida aos poucos: tem gente morando, gente trabalhando, gente jantando no rooftop ou almoçando no Greguinho, um self-service que ocupa quase um andar inteiro do edifício e pratica preços democráticos. Assim, um Esther vivo é como uma rua dinâmica: com encontros entre diferentes. É claro que há problemas de estrutura, discussões em reuniões de condomínios e, vira e mexe, síndicos autoritários – como um que uma vez quis cometer o sacrilégio de botar catracas na entrada –, mas o que é uma rua sem conflitos?
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