_
_
_
_

Depressão: O segredo de todas as famílias

Onze milhões e meio de brasileiros sofrem oficialmente de depressão, segundo a OMS

O músico Iván Ferreiro em seu estudo em Gondomar (Espanha).
O músico Iván Ferreiro em seu estudo em Gondomar (Espanha).OSCAR CORRAL (EL PAÍS)
Mais informações
Vencer a ansiedade
Um teste para prever a resposta aos antidepressivos
Suicídio, o grande tabu

“Saia e conte para alguém.” Foi a resposta de Harvey Milk quando um jovem lhe perguntou como poderia ajudar a combater o estigma da homossexualidade. Quarenta anos depois, o escritor Andrew Solomon repete o conselho do ativista gay norte-americano, mas para vencer outro tabu: a incompreensão e a vergonha que cercam quem sofrem de depressão. Solomon, escritor e professor de Psicologia em Columbia, fez disso uma cruzada pessoal. E luta para romper o silêncio que acompanha um transtorno que já afeta 2,5 milhões de espanhóis – os diagnosticados, já que muitos nem sequer se atrevem a confessar o que sentem. No Brasil, 5,8% da população sofre da doença, o que representa 11,5 milhões de brasileiros, segundo a OMS.

“Há muitas causas pelas quais na Espanha 40% dos pacientes com um transtorno depressivo maior não estão em tratamento. Mas sem dúvida uma delas é o estigma.” Antonio Cano é doutor em Psicologia e catedrático da Universidade Complutense de Madri, e em seus muitos anos de prática viu como funciona o círculo vicioso da culpa. “Por um lado o paciente se isola, e por outro as pessoas não entendem o que acontece com ele: que sofre de algo que se chama depressão. O paciente não tem informação, e a sociedade muito menos. E a depressão é algo que pode afetar a todos nós.”

Andrew Solomon conhece bem esse peso. Porque também o sepultou. Em 1993, sentiu que tinha perdido o interesse pela vida. Tudo para ele era difícil. Escutar as mensagens da secretária eletrônica. Preparar a comida. Tomar banho. Uma crise de ansiedade se seguiu à depressão. E, um dia, já não conseguia se levantar da cama. Descobriu que o sinônimo de depressão não é tristeza, e sim falta de vitalidade. Mas fez tratamento e se recuperou. E decidiu estudar o que tinha lhe acontecido para ajudar os outros. Escreveu O Demônio do Meio-Dia – Uma Anatomia da Depressão (Companhia das Letras). “Sempre que alguém que sofreu uma depressão conta isso a outra pessoa, estamos rasgando a cortina do secretismo. Aqueles que se veem confinados no silêncio demoram mais a se recuperar. Devemos convencê-los a falarem, dizendo que falar pode salvar suas vidas. Porque a depressão é o segredo de família que todas as famílias têm.”

Esse segredo de família já afeta 322 milhões de pessoas no mundo. E não para de crescer. É uma das três principais causas de incapacidade no mundo. E em 2030 será a primeira. Por isso neste ano a OMS dedicou o Dia da Saúde ao lema “Falemos da depressão”. Mas falar é que é difícil.

“A bola vai ficando cada vez maior. Você está mal, e as pessoas ao seu redor não entendem. E o Andrés que todo mundo conhece está ficando vazio por dentro. Isso é duro, muito duro…” Esse Andrés que se esvaziava por dentro era o mesmo que um tempo depois encheria um país inteiro de alegria, ao marcar o gol do título espanhol na Copa do Mundo de 2010. Andrés Iniesta. Contou sua via crucis aos jornalistas Ramón Besa e Marcos López. Quando foi lançada sua biografia, La Jugada de Mi Vida, a psicóloga que o havia tratado observou um aumento nos telefonemas ao seu consultório. Ela relata que para muitos pacientes é um estímulo ver que uma personalidade que eles admiram sofre da mesma coisa.

Basta lembrar de Bruce Springsteen. Ele também se atreveu a contar em sua biografia, Born to Run, sua batalha constante contra a depressão. O professor Cano compara sua sinceridade à de Magic Johnson. “Assim como naquela época [1991] Johnson meteu as caras e, quando havia um maior estigma sobre a AIDS, disse ao mundo: ‘Tenho o vírus’, gestos como o de Bruce Springsteen podem ajudar a eliminar o estigma contra a depressão.”

“Há um ponto no qual se perde o mapa e se perde a bússola, você começa a agir a esmo. É o ponto de absoluta angústia. Aí não há nada que a pessoa racionalmente possa fazer.” Assim se sentia o escritor Luisgé Martín, como narra em El Amor del Revés. Um livro, diz ele, despudorado, com o qual arrebentou cadeados e exorcizou demônios. A culpa. A vergonha. O medo. O pesadelo de ser homossexual em uma Espanha em que isso era mais do que um pecado. A luta de passar por um processo de depressão e se sentir incompreendido. “Comprar um remédio para dormir numa farmácia é quase como antes comprar camisinhas, você ruborizava. A gente tem a sensação de que tudo o que acontece é porque você se comportou mal. Você é depressivo porque não é capaz de olhar de outro modo para a vida.”

O músico Iván Ferreiro também agiu a esmo contra a depressão, sem saber o que o atingia. Até que um ataque de pânico, na completa solidão de um apartamento em Buenos Aires, o empurrou a pedir socorro. Conta a história dando voltas. Recorda que estava havia anos sem dormir. Obrigando-se a fazer coisas que não queria. Saindo sem se atrever a olhar na cara das pessoas. Chegou a gravar um disco sem recordar depois nem como nem quando. Mas não se tratava. “Até que o médico me liga e me diz: ‘Olha, você toma um negócio para a alergia todos os dias, usa um inalador de asma o tempo todo, e está me dizendo que não quer tomar esse comprimido?” Só quando começou a compreender o que lhe acontecia conseguiu ver a saída. “Nas depressões a linguagem é muito importante. E que alguém saiba lhe explicar com palavras o que está acontecendo com você, e que você perceba que no fundo é como uma puta gripe, uma gripe de pessimismo e de falta de vontade. Mas você se cura. O principal é se render e dizer ‘Não aguento mais’”.

Exprimir a dor em palavras é o primeiro remédio. Quem passou por isso sabe. E sabe também que esse é o desafio. Lutar contra o tabu. Romper o estigma. “Aprender a viver é aprender a nomear”, diz Luisgé Martín. Aprender a curar-se é colocar em palavras o segredo de família que todas as famílias têm. A depressão. A doença que continua avançando em silêncio.

"Faça o que quiser"

Iván Ferreiro ri quando fala dos seus amigos. De como o ajudaram a sair. Simplesmente por aguentá-lo. “Mas também tem amigos que atrapalham muito, com ótima intenção negam sua depressão e dizem: ‘O que você tem é que você precisa começar a trabalhar, o que você precisa é ter uma namorada, sair por aí. Faça o que quiser. E faça o que quiser é a maior mentira que sem perceber as pessoas que nos amam nos dizem.”

O conselho bem-intencionado às vezes escorrega para o território da felicidade por decreto. Luisgé Martín tinha um bom amigo psicólogo com o qual comentava seus problemas. E a resposta sempre era a mesma: é preciso não se deixar abater, se levantar. E Luisgé se revoltava: “É como se eu fosse ao ortopedista porque tenho o joelho ruim e ele me diz que é preciso caminhar. Claro que não”.

“É preciso ser muito cuidadoso com a maneira como você cuida de alguém que sofre de uma depressão. Ser intrusivo não ajuda. Nem impor um regime de falsa alegria. Às vezes a pessoa deprimida precisa é de alguém que se sente no outro lado da porta, às vezes precisa de privacidade.” É a recomendação de Andrew Solomon: “Ame a uma distância cuidadosa, se for isso o que você precisar fazer, porque, embora o amor por si só não possa curar a depressão, é a ferramenta mais próxima que temos.”

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_