Suicídio, o grande tabu
Não provoca discussões na televisão, mas o suicídio tira a vida de uma pessoa a cada 40 segundos. Suas famílias carregaram por séculos um estigma que as obrigava a se esconderem
A melhor maneira que Francisco Sánchez encontrou para explicar o que se passa com ele é dizer que sente “cansaço da alma”. Os antigos chamavam isso de melancolia, a “bílis negra”. Um buraco tenebroso onde nada faz sentido e não há futuro, só um presente de sofrimento insuportável. Francisco Sánchez –Paco para todos–, um técnico em eletrônica de 50 anos, começou a se precipitar para o abismo no dia em que passeava pelas ruas de Huelva (no sul de Espanha), sua cidade, e de repente se sentiu como se estivesse em um lugar estranho. Logo veio a queda livre, com duas tentativas de suicídio. A segunda ele planejou com antecedência. Deixou uma nota para os pais dizendo-lhes que ficassem tranquilos porque já não teriam mais de cuidar dele. “Agora estou melhor, mas tenho o espírito cansado. Não posso descartar outra tentativa”, confessa.
Para que permaneça sob vigilância, Paco, solteiro, foi viver com os pais. Eles guardam à chave as caixas de remédios –toma uma dúzia de comprimidos por dia– com os quais combate o transtorno ansioso-depressivo com o qual foi diagnosticado. Mas é difícil saber e explicar o que se passa: “Por quê? Por quê?... Essa é a pergunta que está sempre aí”. Sua amiga Celes, que sofreu com o suicídio de um filho, até faz piadas com ele.
–Mas, vamos ver, Paco, você quer morrer ou não?
–Se morrer é não ter esperança na vida... Vou com uma máscara colocada.
A cada duas horas e meia uma pessoa tira a própria vida na Espanha. A estatística é tão brutal que transforma o suicídio na primeira causa de morte não natural, com o dobro de vítimas dos acidentes de trânsito. Milhares de tragédias das quais não se fala porque a morte voluntária é um tabu que resistiu desde o começo da civilização. Séculos atrás, os corpos dos suicidas eram enterrados sob montes de pedras. Agora são empurrados para trás de um muro de silêncio.
As estatísticas oficiais do país nem sequer estão atualizadas. As últimas são de 2014 e situam o problema em 3.910 mortos, o maior número registrado até então. Os especialistas calculam que os dados estejam subestimados em pelo menos 20% por várias razões, como o desejo de algumas famílias de ocultar o fato. “As cifras do Instituto Nacional de Estatística também não são muito rigorosas”, afirma Javier Jiménez, um psicólogo que preside a Associação para a Pesquisa, Prevenção e Intervenção do Suicídio (AIPIS). “Em outros anos comprovamos que havia 500 mortos registrados nos institutos anatômico-forenses que não eram compilados na estatística total. Além do mais, sabe-se que parte dos acidentes de trânsito são suicídios, também os que se precipitam no vazio por causas não determinadas ou os que morrem por ingestão de medicamentos.”
Paco se sentia muitas vezes “como um leproso”. Algumas pessoas não falam com ele e mudam de calçada ao vê-lo. Como seus antigos colegas de trabalho, o lugar onde sua alma foi consumida. “Entrei na empresa aos 15 anos e dediquei a ela toda a minha vida, da manhã à noite. Não fiz outra coisa”, relata, lutando contra o tremor na voz. “Ali foi sendo gerado um ambiente tóxico, até violento, por parte dos chefes. Um dia descobri que queriam me mandar embora para contratar dois rapazes mais baratos e entrei em colapso. Deram-me baixa por depressão, mas me mandaram a uma inspeção e me diziam que eu não tinha nada.” Paco vive agora abatido pela sensação de ter desperdiçado a vida inteira. E todas as noites, em sonhos, regressa interminavelmente a seu posto de trabalho.
Os familiares dos suicidas se denominam sobreviventes. “É porque nós já não vivemos, só sobrevivemos”, explicam
Há consenso entre os especialistas em atribuir a maioria dos suicídios a transtornos psicológicos. “Muitos estavam latentes e foram desencadeados por algum acontecimento, como uma ruptura de uma relação ou dificuldades econômicas”, explica Jiménez. A crise coincidiu com um crescimento das mortes voluntárias, que aumentaram em 450 entre 2008 e 2014, mas as causas, segundo os estudiosos, são mais profundas.
Para lutar contra sua sombra obscura, Paco Sánchez se uniu a outros sobreviventes. Assim decidiram chamar-se, embora nenhum dos novos companheiros de Paco tenha posto sua vida em risco. O que lhes aconteceu é que alguém muito próximo deles se matou. “E desde então já não vivemos, só sobrevivemos”, explicam. Conheceram-se em terapias de grupo para o luto, nas quais foram buscar alguém que os entendesse de verdade, que também se tivesse precipitado a esse abismo de dor, incredulidade e sentimento de culpa por não ter podido evitar. Alguém que, como eles, ao ouvir um telefone ou um elevador, ao ver os contornos de uma figura familiar na rua, tivesse por um instante a sensação de que o ser perdido havia regressado. Alguém que tivesse vivido a peregrinação em busca de ajuda psicológica e tivesse se deparado com a falta de especialistas para tratar de pessoas na sua situação. Alguém disposto, apesar de tudo, a sair do poço, a não se esconder, a romper o tabu, a gritar à sociedade que sofreram muito, mas não têm nada do que se envergonhar.
Tem sido como uma saída do armário. A primeira associação de sobreviventes, Després del Suïcidi, foi fundada em 2013 por Cecilia Borrás, uma psicóloga de Barcelona, depois de perder o filho Miquel, de 19 anos. Em Madri já existia desde 2009 a AIPIS, criada por Javier Jiménez para atividades de prevenção, suprindo a carência de programas oficiais. Passaram –e passam– horas falando por telefone com desconhecidos que lhes telefonam desesperados, sem saber a que outro local recorrer. Seu apostolado começa a dar frutos. Sob sua inspiração, os sobreviventes de Huelva criaram a plataforma A tu Lado. E já há outros grupos sendo criados para romper o silêncio nas Canárias, País Basco e Galícia. Defendem que uma parte dos suicídios poderá ser evitada. Que para isso é essencial que não se oculte o problema e que sejam aplicados os planos de prevenção elaborados pelas autoridades da saúde, e que mal são cumpridos.
“Pedimos a todos que nos falem com naturalidade e não evitem nenhuma palavra. Às vezes rimos lembrando de coisas de Jesús”
Os testemunhos dos sobreviventes falam de morte, mas também de vida. Da coragem para enfrentar o indizível e assumir que a melhor maneira de manter a lembrança daquele que se foi é seguir em frente. Nem todos reagiram da mesma forma. Alguns desmontaram imediatamente o quarto do ausente, enquanto outros o conservam com todos os detalhes, como um altar. Alguns gostam de repassar velhas gravações daqueles que não voltarão mais, enquanto outros não suportam nem sequer ouvir as suas vozes. A uni-los, porém, está a determinação de tentar fazer com que ninguém mais caia nesse inferno que, para eles, tornou-se cotidiano. Eis os seus testemunhos, em primeira pessoa.
O compromisso
José Carlos Soto Madrigal, 56 anos, editor. Olga Ramos, 51 anos, técnica em informática. Sua única filha, Ariadna, 18 anos, se suicidou em 24 de janeiro de 2015 em Madri.
“O pior é a tortura do ‘e se...’: ‘E se eu lhe tivesse dito isso, e se eu tivesse agido de outra maneira...’ Toda a vida dos meses anteriores passa pela sua cabeça, você esquadrinha cada detalhe, conversa, olhar, qualquer sinal... E não entende nada, dá vontade de morrer.
Nos primeiros meses, já não éramos mais pessoas. Às vezes, comíamos alguma coisa somente porque aparecia alguém que nos trazia comida. Ela não nos deixou ver absolutamente nada, escondeu tudo. Tentávamos fazer com que falasse, mas, ao final, ficávamos falando sozinhos. Um dia, Carlos lhe perguntou: ‘Filha, você não pensou em se suicidar, certo?’ E ela respondeu: ‘Papai, o que você tem na cabeça?”. Ariadna era uma menina muito madura para a sua idade. Lia, pintava, tocava violão, gostava de cinema e de teatro... Tinha amigos, era muito querida na escola, embora nem sempre encontrasse pessoas que compartilhassem as suas inquietações culturais. E era muito sensível, ficava irritada quando nos ouvia falar mal de alguém. Tivera uma adolescência muito tranquila. Gostava de estudar, queria fazer Direito ou Relações Internacionais. Matriculou-se em um curso de italiano porque estava apaixonada pela Toscana e pensava em ir morar lá. Até que, da noite para o dia, em novembro de 2013, os temas de umas provas foram alterados e ela se sentiu bloqueada. Nunca a pressionamos em relação aos estudos; dizíamos, até, que ela estudava demais. Mas ela nos disse que tinha tido uma baixa muito grande.
Nós a levamos para um psicólogo, que aconselhou que deixasse o colégio. Ao mesmo tempo, ele tentava nos acalmar dizendo que ela era uma menina madura demais. Ela parecia se esforçar para que nos sentíssemos melhor, vestia roupas mais alegres, ouvia música relaxante... No entanto, não conseguia dormir. Nós a levamos a um médico, que receitou Orfidal e Prozac. Nos últimos dias, parecia que estava melhor. Mas já tinha planejado tudo, sabendo inclusive qual era o dia de folga do porteiro do prédio.
“Eu chamo o quarto de Daniel de museu. Continua tal como o deixou, até mesmo com os sapatos sujos, é que preciso que continue com seu cheiro”
Na manhã daquele sábado, Olga lhe disse: “Acorde, que você é o que eu mais amo no mundo, e preciso que você seja como antes’. Íamos visitar uns amigos de quem ela gostava muito, mas ela disse preferia ficar em casa. Embora nos três meses anteriores Carlos tivesse estado quase todos os dias ao seu lado, não era a primeira vez que ela ficaria sozinha. Deixou-nos uma carta em que dizia que nos amava muito, que não aguentava nos ver sofrer e que a perdoássemos. E transcreveu um parágrafo de Boris Pasternak [o escritor russo fez uma tentativa de suicídio] para explicar como se sentia.
Procuramos não recordá-la tal como estava nesses últimos momentos. Fizemos terapia, o que nos ajudou muito. E, mais do que tudo, conhecemos a AIPIS. Integramos a associação e damos palestras para pais. Já ajudamos a identificar três potenciais casos. Para nós, o mais importante, agora, é que ninguém mais passe por isso”.
O luto
Celes Toscano, 50 anos, cozinheira, viúva. Preside a associação A Tu Lado, de Huelva. Daniel, um de seus filhos, se suicidou, com 21 anos, em 8 de novembro de 2013
“Você teria de ver a nossa aparência quando nos encontramos na terapia do luto: como estávamos penteados, os cabelos brancos sem tingir, descuidados e vestidos com moletons e casaco esportivo. Ainda no ano passado comprei uma calça vermelha com um blusão, provei-os duas ou três vezes e tive de tirá-los, não podia. Tampouco pude usar perfume nem pintar as unhas. É um direito que você nega a si mesma. A gente continua vivendo, mas tem tanta dor por dentro que, às vezes, quando estou sozinha, digo para desabafar: “Bom, agora que tenho meia horinha vou chorar um pouco”.
As pessoas se portaram muito bem, embora no início ninguém quisesse vir aqui em casa. Eu achava que tinha me acontecido a coisa mais estranha do mundo, algo que não acontece com ninguém. A dor é tão grande que acaba sendo física, sai pelos seus poros. Os meses que passei enfurnada! Até que me armei de coragem e decidi ir ao grupo de terapia. As amigas mais próximas não concordam que eu participe da associação, dizem que não devo ficar matutando. Mas isto está me ajudando tanto! Se há que chorar, choramos; se for para rir, rimos. Eu via que meu filho tinha um problema, mas nunca pensei que fosse chegar aonde chegou. Tinha transtornos do sono, podia passar dois dias sem pregar o olho e depois 24 horas dormindo. E logicamente também tinha transtornos na alimentação, estava um pouquinho nervoso, estranho, não se podia falar com ele. Eu o levei ao médico de família e disse: 'Dê-lhe uns comprimidos ou alguma coisa'. Mas ele se saiu bem nos exames e o médico nos disse que não era necessário.
Daniel tentou entrar duas vezes no Exército e não conseguiu. Mas nos estudos era regular, havia acabado de se matricular em mecânica. Teve uma namoradinha que o deixou e ele ficou um pouco travado e deprimido. Mas já estava com outra, uma garota alta, bonitinha, de cabelos louros, com quem estava muito orgulhoso. Estavam juntos havia três meses quando um dia a moça o enganou e foi embora com outro. Daniel se aproximou para falar com ela no colégio. Também telefonou para o rapaz. E depois se suicidou. O legista nos disse que tinha sido um curto-circuito cerebral. Uma das coisas que mais me machucam é que me digam que ele decidiu. Como ele ia decidir? Foi o sofrimento que não o deixou decidir.
O irmão dele, um ano e meio mais velho, ficou muito mal. O quarto de Daniel – eu chamo de museu – continua como ele o deixou, até com os sapatos sujos. Preciso que continue tendo o cheiro dele”.
Continuar vivendo
María, 59 anos. Seu filho, de 30, cometeu suicídio em 2013
“A última coisa que disse ao meu filho, naquela mesma manhã, era que estava orgulhosa dele. Tinha resolvido seus problemas financeiros e era um pai maravilhoso para suas duas meninas. Tinha me ligado para que eu ficasse com a menor. Estava radiante na escola agrícola fazendo pão com a menina. Por isso, quando me contaram, fiquei em estado de choque. Parecia um sonho, que tinha ficado louca de repente. No necrotério pensei que aquilo não estava acontecendo comigo. Nem conseguia chorar. Eu me pergunto quanta dor e sofrimento tinha meu filho para que nem suas duas filhas tenham conseguido prendê-lo à vida. Acho que influenciou a crise econômica, entre outras coisas.
Agora acho que meu filho pressentia que ia morrer jovem, porque viveu como morreu: rápido. Era quase uma criança e já saía com duas ou três meninas. Com 22 anos teve uma filha. Era muito impetuoso. E muito alegre, embora às vezes, de repente, ficava triste. Praticava muito esporte, tinha um coração de ouro e um caráter muito empreendedor, muito lutador. Ganhou muito dinheiro como operador de guindaste durante o boom da construção. Investiu em um apartamento e um carro. E teve outra filha. Até que veio a crise, se separou, o salário caiu pela metade porque teve que começar a trabalhar como garçom e as despesas continuaram iguais. Algumas vezes tivemos que ajudá-lo. Deixou o apartamento para alugá-lo para sua irmã e assim poder continuar a pagar a hipoteca. Contava que não dormia bem e parecia mais magro. Mas tinha planos para o futuro com uma nova mulher e outro emprego, embora não fosse na sua profissão. Parecia que, finalmente, se recuperava. Como podia pensar que meu filho ia fazer algo assim?
Naquele dia, um cliente do bar onde trabalhava o acusou de roubar o celular. ‘Para quê, se tenho três celulares?’, ele disse. Mas o cliente o ameaçou: ‘Tenho um cargo importante e você vai para a rua’. Nunca quis descobrir quem era esse homem, mas depois ficamos sabendo que o celular estava com ele. Caiu tudo sobre meu filho, deve ter pensado que ficaria sem emprego. Disse a uma colega: ‘Não aguento isso. Como me sinto mal!’. Ao terminar, pegou a bicicleta... e se suicidou.
Algum tempo depois, às vezes eu ainda pensava que ele tinha ido para a França ou para a Alemanha. Uma vez segui um rapaz pelo mercado pois de longe se parecia com ele. Lentamente voltei à realidade. Ia ao mar sozinha para poder gritar. Nadava até no inverno. Eu me concentrei na arte, na família e nos amigos. E agora estou aqui para dizer às pessoas que, apesar de tudo, é possível continuar vivendo”.
A culpa
Maria de la Cinta Rullo Sorribes, 57 anos, aposentada por invalidez, casada e mãe de um filho. Sua outra filha, Marina, tirou a própria vida em 20 de janeiro de 2008 em Tortosa (Tarragona)
“Supostamente eu também tentei me matar uma vez, embora não esteja tão segura. Tinha 33 anos e dois filhos. Talvez só quisesse esquecer a vida de merda que tinha e um marido que minava minha autoestima. E tomei comprimidos. A psicóloga me disse: ‘Você não tem nada. Só precisa deixar seu marido’. Demorei oito anos para conseguir, porque ele queria ficar com as crianças. Depois me apaixonei por uma garota e saí do armário pela porta da frente em uma pequena cidade como Tortosa.
Passei mais oito anos vendo a Marina sofrer por um transtorno de personalidade borderline. Após uma de suas mais de 50 tentativas de suicídio, escrevi um poema: ‘Dói depois de amanhã /dói no presente / dói a dor / dói até a dor que não sinto’.
Sempre foi competitiva até com ela mesma. Começou com transtornos alimentares aos 16 anos. Pedimos ajuda em um hospital de Barcelona, mas conseguimos uma consulta para seis meses depois. Naquela época, conheceu um canalha que a levou às drogas. Sua primeira tentativa foi uma overdose de heroína. Naquele dia tive um pressentimento, fui para casa e a encontrei caída com a borracha no braço. Eu estava com os efeitos da quimioterapia por um câncer de mama. Tentou deixar as drogas, começou a ir aos psicólogos... Era uma montanha-russa. Nos momentos baixos, só via um buraco negro. Após cada tentativa, ficava isolada por uma semana e, quando o tratamento fazia efeito... para casa. Uma vez engoliu um alfinete de segurança aberto e demoraram cinco horas para tirá-lo. Um médico chegou a me falar: ‘Você precisa se acostumar com a ideia de que ela vai acabar conseguindo’. Foi como um tapa. Tinham jogado a toalha, mas eu não podia imaginar que um dia não iria chegar a tempo.
Quando tudo aconteceu, já havia deixado a droga. Eu trabalhava à noite em um centro de alarmes. Na parte da tarde rimos juntas assistindo a Sex and the City e ela me deu um beijo quando saí para trabalhar. À meia-noite me ligou uma vizinha com quem tinha ficado, alarmada porque ela não respondia. Fui imediatamente para casa e encontrei o celular, a identidade, a bolsa... tudo colocado sobre a cama. Liguei para a polícia. Às 21h me avisaram: ‘Se jogou na frente do trem das 19h’.
Pedi licença do trabalho, mas, ao prolongá-la por ansiedade, fizeram da minha vida algo impossível. Vivia na frente das vias do trem, cada um que passava... eu morria um pouco. A psicóloga não me deu outra solução, a não ser mudar de casa. Mas eu não ganhava o suficiente! As fofocas me destruíam, os olhares acusadores, as acusações diretas. Tanto que uma pessoa me disse:
‘Isso é fruto da vida que levou’. E a culpa me atormentava. Outros me diziam que tudo acaba sendo esquecido. Mas eu não queria esquecê-la! Quando não estava em crise, era a menina mais doce, carinhosa, trabalhadora e simpática do mundo.
Um dia em que eu estava mal, meu filho Marcel me disse: ‘Mãe, não chore mais. A Marina está onde queria’. Eu me aferrei a isso e decidi que minha filha estaria dentro de meu coração, que viveria através do que eu vivesse. E que por isso não podia levar uma vida de merda. Às vezes ainda me esqueço disso, mas continuo aqui, tentando viver por mim e por ela”.
O curto-circuito
Mónica Rossi Palomar, 48 anos, funcionária do serviço social e vereadora da Esquerda Unida em Huelva. Manuel Eugenio García Serrano, 49 anos, sócio de uma empresa de economia social de comércio. Um de seus dois filhos, Jesús, de 18 anos, se matou em 15 de junho de 2013
“Nessa mesma manhã, ele passou um tempo tocando violão. E cinco minutos antes veio da casa da vizinha com um peixe. Na semana seguinte iria acampar com os escoteiros. No dia anterior falou com seu pai sobre projetos, estava tirando a carteira de motorista, tinha uma namorada... Tudo foi de um dia para o outro. Talvez nós não tenhamos visto os sinais, mas absolutamente ninguém os viu: amigos, família, vizinhos... Pode ser que sejam garotos especiais, que vivem e sentem de forma diferente. Jesús só viveu 18 anos, mas teve uma vida muito intensa e plena.
Era muito extrovertido e prestativo, se oferecia para tudo. E também muito impulsivo. Sempre com um sorriso, estudava Direito, participava da romaria da Virgem do Rocío de Huelva, saía em procissões na Semana Santa, gostava de touradas, de flamenco... apesar de também gostar do campo, se empenhou em estudar Direito. Estava tudo bem até assistir ao julgamento de um caso de violência de gênero. Voltou nos dizendo: ‘Eu não poderia defender um homem assim’. E largou o curso para se matricular na faculdade de gestão agrícola.
O legista nos disse que foi um curto-circuito cerebral. Estava em casa com seu irmão Sergio, seis anos mais velho. Eram duas horas da tarde, entrou no banheiro e se matou. Deixou uma nota que dizia somente: ‘Sinto muito’. Um vizinho ouviu os gritos de Sergio, que correu para a rua de shorts e descalço. A Mónica e foi informada por uma médica do 061 (número do serviço de emergência da Espanha) e no começo até achou que se tratava de uma brincadeira, de tão inconcebível que lhe parecia. Porque é algo em que nem sequer pensamos. Para esclarecer o que aconteceu, a polícia levou nós três à delegacia e nos deixou lá até uma hora da madrugada. Eles nos trataram bem, dentro das circunstâncias. Sergio sofreu ali um ataque de ansiedade.
“O pior é a tortura do ‘e se’: ‘E se eu tivesse falado isso. E se tivesse agido dessa forma”, contam Carlos e Olga que perderam sua única filha
Na semana seguinte, fomos nós três a um psicólogo que arrumamos. A médica da família nos via toda semana e nos enviou ao departamento de Saúde Mental, mas demoraram três meses para nos atender. A experiência não foi boa. Quando Eugenio comentou o ocorrido com a psiquiatra, ela ficou tão nervosa que ele quase precisou consolá-la. Ela disse que Eugenio precisaria se medicar durante toda sua vida. Mas, olhe, já não toma mais nada. O psicólogo, Juan, foi um apoio fundamental, mas nos faltava algo: falar com pessoas que soubessem pelo que estávamos passando. Por isso entramos no grupo de luto da Associação de Escuta San Camilo, onde nos encontramos com três mães na mesma situação e nos ajudou muito. Tivemos problemas no casamento e brigávamos frequentemente, mas superamos. Somos religiosos e a fé nos ajuda. E nossa rede de apoio tem sido a família, os amigos e os colegas da Irmandade Obreira de Ação Católica. Eugenio já havia sofrido uma depressão e sabia o que fazer para não cair novamente. Mónica trabalha com pessoas com deficiência e isso foi um estímulo, porque quando voltou ao trabalho a trataram com muito amor e respeito.
Pedimos a todo mundo que falem conosco com naturalidade, que não evitem nenhuma palavra. Sergio demonstrou uma força surpreendente. Às vezes até rimos bastante lembrando coisas de Jesús. Mas nos primeiros meses acordava todas as noites gritando: sonhava que corria pelo corredor e nunca chegava ao banheiro. Não queríamos deixar a casa, porque fomos muito felizes nela, de modo que decidimos mudar todo o banheiro. Sergio sempre escreve algo no Facebook nos aniversários do suicídio de Jesús. No último colocou: ‘Três anos e ainda não aprendi a pensar em você, a lembrar de você sem que um nó aperte até a minha alma. Sua ausência ao meu lado é uma névoa de incógnitas que somente meu desejo de saber que você toma conta da gente onde quer que esteja alivia”.
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