Assim funciona o cérebro do melhor jogador do mundo de xadrez às cegas
O uzbeque Gareyev explica como jogou 48 partidas ao mesmo tempo sem ver os tabuleiros e bateu o recorde mundial
O xadrez às cegas, memorizando a posição das peças, é uma das provas mais surpreendentes da capacidade da mente. O norte-americano de origem uzbeque Timur Gareyev, de 29 anos, bateu o recorde mundial de partidas simultâneas sem ver o tabuleiro no dia 4 de dezembro: disputou 48 em 18,5 horas, alcançando mais de 80% da pontuação. Agora, cem dias depois, sabemos como ele fez isso e por que sua mente é extraordinária.
Um ano antes da proeza, Gareyev prestou-se a que seu cérebro – dividido em 200 áreas – fosse analisado profundamente pela equipe do doutor Jesse Rissman, diretor do Laboratório de Memória da Universidade de Los Angeles (UCLA). Esses exames são parte de um estudo muito mais amplo que ainda não foi publicado, mas Rissman revelou alguns resultados. A conclusão mais surpreendente para nós, que falamos há anos do xadrez às cegas, é que a memória fotográfica de Gareyev não é extraordinária: “Não encontramos nada de excepcional nos testes convencionais aos quais Gareyev foi submetido no que se refere à capacidade de memorizar números, fotos ou palavras numa determinada ordem”, diz Rissman, que, no entanto, ficou “muito surpreso com o número de partidas que ele pode manter ativas simultaneamente na memória”.
Então, onde está a chave? Está no fato de que várias partes do cérebro de Gareyev, especialmente na área frontoparietal, estão muito mais bem conectadas do que na grande maioria das pessoas, como mostra o scanner feito na UCLA. “Usamos essa rede de conexões em quase todas as tarefas complexas. Ela nos ajuda a concentrar a atenção, lembrar instruções ou regras e decidir se respondemos ou não a uma pergunta ou estímulo”, explica Rissman. Além disso, os especialistas da UCLA descobriram que a visão espacial de Gareyev é excepcionalmente desenvolvida, porque a parte do cérebro que a controla tem muitas conexões com outras.
O conceituado pesquisador espanhol Fernando Maestú, diretor do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Computacional do Centro de Tecnologia Biomédica de Madri, também está impressionado com a façanha de Gareyev: “Não é exagero dizer que está perto dos limites humanos. Reter e lidar com uma quantidade enorme de informações durante quase 19 horas consecutivas com resultados tão bons não tem precedentes, que eu saiba, em outras áreas da atividade intelectual. É algo realmente muito extraordinário”.
Depois de tomar conhecimento da prévia dos resultados do estudo de Rissman, Maestú deduz: “Gareyev deve ter um desenvolvimento excepcional do que chamamos de agenda visuo-espacial da memória operativa, aquela que nos ajuda a lembrar de informações durante curtos períodos de tempo, não durante meses ou anos. Essa função depende dos lóbulos central e parietal, que estão alojados no lado direito do cérebro. Em outras palavras, o que é surpreendente nesse caso não é o fato de ele se lembrar muito, mas o de lidar com o que se lembra de maneira notável, muito melhor do que o habitual”.
Essa extraordinária capacidade se deve aos genes ou ao treinamento? “A resposta a essa pergunta é quase sempre mista. Qualquer um pode atingir um domínio muito avançado da técnica para tocar piano, mas só isso não basta para que consiga tocar tão bem quanto outra pessoa com um talento inato para tocar piano, que também trabalhou intensamente a técnica”, enfatiza Maestú.
O treinamento de Gareyev foi muito exaustivo nos últimos anos. Não tanto na parte técnica do xadrez (ele detém o título de grande mestre desde 2004 e foi terceiro colocado no Campeonato dos EUA de 2013), mas no fortalecimento da memória e, principalmente, na resistência física: correu maratonas, participou de corridas de moto de uma semana, faz ioga todos os dias e tem uma alimentação vegana. Durante as 18,5 horas do recorde mundial, em 4 de dezembro em Los Angeles, ele pedalou cerca de 80 quilômetros numa bicicleta estática, bebeu chocolate (queria evitar café e bebidas energéticas) e suco de maçã, e comeu pequenas quantidades melancia marinada em limão, abacate, óleo de coco, folhas verdes e pimentas picantes.
Nas exibições de simultâneas às cegas, Gareyev procura associar cada partida com uma sala de um grande palácio imaginário. Também as associa a determinados números; por exemplo, as partidas em que há muito ataque são agrupadas sob o número nove, porque é o do centroavante no futebol. Segundo conta num artigo publicado no último número da revista New in Chess, ele deu muita importância a encontrar e conversar na véspera com os adversários do dia seguinte: “Assim, quando eles anunciavam sua jogada, eu lembrava como eram fisicamente associava a voz e a imagem com a posição desse tabuleiro”.
Rafael Andarias é enxadrista e médico do serviço de emergência de Denia (Alicante); foi o primeiro responsável pelo controle antidoping da Federação Espanhola de Xadrez. Ele vê muita lógica nos métodos e na alimentação de Gareyev: “De fato, eu aplico minha maneira de pensar como enxadrista ao meu trabalho no pronto-socorro. Se num dado momento estou atendendo doze pacientes ao mesmo tempo, eu os distribuo mentalmente como se fossem doze partidas simultâneas e assim vou decidindo se dou alta para um, ou ele continua em observação, ou precisa ser operado ou deve fazer mais exames. Gareyev leva essa organização mental ao limite, ao máximo, e, além disso, às cegas”.
O que o norte-americano comeu e bebeu durante a proeza é algo muito pensado: “Numa situação assim, é fundamental que a digestão seja muito leve. Café e bebidas energéticas seriam contraproducentes, pois seu efeito é demasiado rápido e também excitam muito, excessivamente para o que ele necessitava; pelo contrário, o chocolate líquido contém substâncias similares à cafeína, mas de efeito mais suave e prolongado. Os carboidratos do suco de maçã proporcionam energia de rápida absorção, equilibrados com a grande quantidade de água que a melancia possui, de efeito mais duradouro”.
O desempenho do cérebro depende muito da boa circulação sanguínea e da capacidade pulmonar. “Portanto, o treinamento de Gareyev em maratonas faz muito sentido. E a bicicleta estática durante a exibição também, porque assim ele evitou que seu corpo se entorpecesse; pela mesma razão que nos voos de longo curso é preciso movimentar pés e pernas para evitar a trombose”, acrescenta Andarias. E conclui: “Esse caso é um exemplo extremo para demonstrar que a boa preparação física é essencial para o alto rendimento no xadrez e, por extensão, em qualquer atividade intelectual. Por exemplo, na minha profissão surgiu um debate sobre se os nossos plantões na emergência devem durar 24 horas seguidas, por causa da grande resistência física que isso exige e dos riscos de perda de atenção e erros não forçados”.
Além dos pequenos períodos de descanso de dez minutos para ir ao banheiro e esticar as pernas, Gareyev experimentou duas interrupções mais longas, inesperadas e incômodas. A primeira porque o alarme de fumaça disparou, pois os organizadores estavam preparando salsichas para os participantes. A segunda porque um dos seus adversários suspeitou que o dispositivo colocado em um ouvido de Gareyev poderia ser usado para trapacear (que alguém, usando poderosos programas de xadrez, estivesse soprando ao norte-americano suas melhores jogadas em cada partida). Foi necessário provar ao desconfiado que o dispositivo estava conectado ao microfone sem fio para anunciar as jogadas.
Em ambos os casos, Gareyev conseguiu manter a concentração e a memória, graças às técnicas de yoga. E assim conseguiu o resultado impressionante de 35 vitórias, 7 empates e apenas 6 derrotas. Quando terminou, estava bastante desorientado e cansado, mas agora já está bem, disposto a bater novamente o recorde mundial assim que tiver um patrocinador. Ele acredita ser capaz de subir para 55 partidas, o equivalente a memorizar a situação de 1.760 peças durante mais de 20 horas seguidas.
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