O cientista que pesquisou por curiosidade e acabou curando uma doença rara
Autoridades dos EUA aprovam tratamento que pode reparar uma falha genética que causa a atrofia muscular espinhal, que costuma matar os pacientes de asfixia antes dos dois anos de idade
Uma da cada 10.000 pessoas nasce com atrofia muscular espinal (AME), um defeito dos neurônios motores que arrebata a força aos músculos, limita a mobilidade e acaba matando por asfixia. Poucos das crianças que a sofrem superam os dois anos de idade e até agora não existia um tratamento efetivo. Isso vai mudar. A véspera de Nochebuena do ano passado, a Administração de Medicamentos e Alimentos de EUA (FDA) aprovou o uso de um tratamento que pode consertar a sentença genético causante da AME. Os bons resultados com o medicamento obrigava a parar dois ensaios clínicos em 2016. Os responsáveis não consideraram ético que os pacientes no grupo de controle, que não recebem o fármaco para comprovar a vantagem real dos que sim o recebem, seguisse sem beneficiar de seus efeitos. Em umas semanas antes de sua aprovação, a revista científica The Lancet publicava um artigo que apontava a que nusinersen, como se batizou ao medicamento, atuava sobre o cérebro e a medula espinal como cabia esperar.
Juan Valcárcel, investigador ICREA do Centro de Regulação Genómica de Barcelona (CRG) e presidente da Sociedade do ARN, considera este trabalho um exemplo pela forma em que se fundiu “a investigação fundamental de qualidade, a visão industrial, o ativismo social e a flexibilidade administrativa”. Valcárcel, que não participou no desenvolvimento deste fármaco, é experiente em splicing, o processo natural que o fez possível. “Nossos genes estão escritos em uma linguagem muito estranha. Se quer escrever uma frase, fá-lo com sujeito e pregado, com um sentido contínuo”, explica Valcárcel. “O genoma não está escrito assim. Tem primeiro uma palavra, depois letras sem sentido, depois outra parte com palavras que se entendem, depois mais sinsentido…”, continua. “O splicing [que se traduz como juntar] elimina o lixo e põe juntas as partes da frase que podem fazer sentido”, acrescenta. Este sistema permite-lhe à célula que um mesmo gene possa ter diferentes leituras e produza diferentes proteínas com diferentes funções em nosso organismo.
As pessoas com AME têm um defeito no mecanismo de cortapega destas mensagens genéticas. Um defeito na produção de uma proteína, causada pela mutação do gene SMN1, provoca a sentença dos neurônios motores. A princípios da década passada, o pesquisador uruguaio Adrian Krainer, no Laboratório de Cold Spring Harbor, cerca de Nova York (EUA), tratou de compreender o que Valcárcel considera uma curiosidade mais bem marginal à causa da doença: a razão pela qual SMN2, outra cópia do gene defeituoso SMN1, não podia fornecer sua função e manter o bom funcionamento dos neurônios.
A análise de um dos ensaios mostra que o tratamento permitiu que 13 dos 20 crianças que tomaram o medicamento sobrevivessem
Esta indagação no mecanismo molecular de um gene aparentemente inútil não era precisamente um caminho condenado ao sucesso. De fato, a focagem de Krainer e sua equipe já era provado sem demasiado sucesso para outras aplicações biotecnológicas. Seu aposta consistia em produzir umas moléculas sintéticas que imitavam ao ARN, a molécula encarregada de transmitir a informação do DNA para a produção de proteínas, para devolver ao gene SMN2 sua capacidade para gerar proteínas efetivas. Depois de muito esforço e o apoio financeiro tanto público como de associações de afetados pela doença, observaram que suas moléculas funcionavam em cultivos celulares e em modelos animais.
Mas o sucesso no laboratório ainda estava longe dos pacientes e aí entraram em jogo duas companhias para levar o projeto até o resultado final. Em primeiro lugar, a empresa californiana Ionis Pharmaceuticals, que colaborou com Krainer para modificar as moléculas de ARN com o fim de obter compostos mais eficazes e estáveis. Nesta etapa foi necessária também a participação de investidores de risco e desempenhou um papel importante o espanhol Frank Rigo, um dos diretores científicos da empresa. Por último, para financiar a fase mais cara de ensaios clínicos, foi necessária a incorporação de outra companhia norte-americana, Biogen, especializada em tratamentos para doenças neurológicas.
Segundo explicava-se no artigo de The Lancet , o efeito do fármaco, que se injeta no fluído cerebroespinal que banha a medula, se provou em 20 pacientes que se incorporaram ao estudo entre 2013 e 2014. Embora muitos tiveram reações adversas importantes, os autores do estudo consideram que não estão relacionados com o medicamento que se provava, e 13 deles permanecem com vida. Os responsáveis pelo estudo em fase III, no que se incluíram mais pacientes, afirmam que os resultados são ainda melhores, embora ainda não estão publicados em revistas científicas.
Valcárcel comenta que outra das surpresas positivas do tratamento é que mantém seu efeito durante muito tempo. “Aplicam-se três injeções durante o primeiro mês e depois só é necessário repetir a operação uma vez a cada em vários meses”, assinala. Com essas doses, muda-se a forma em que se juntam as mensagens do gene para que tenham o significado adequado e produzam a proteína que permite um bom funcionamento dos neurônios motores. À vista destes dados, a FDA, consciente de que não existia nenhum tratamento alternativo, acelerou o processo de avaliação dos ensaios para facilitar sua chegada aos doentes.
O conhecimento do splicing está-se utilizando já para combater outro tipo de doenças. "Em nosso laboratório, em colaboração com Ionis Pharmaceuticals, estamos trabalhando em outras aplicações deste tipo de técnica, por exemplo para o câncer e a disautonomia familiar. Estamos ainda em fases muito temporãs destas investigações", afirma Krainer. Como se trata de um processo fundamental, que ocorre em todas nossas células, este junte das mensagens genéticas pode ser convertido em uma maneira de modificar sua expressão a vontade. Em qualquer caso, este tratamento é uma amostra de que a busca de aplicações específicas não é a única forma de chegar a elas. O trabalho de Krainer começou como uma tentativa de entender em profundidade o funcionamento da natureza. Daquela busca intelectual, como aconteceu muitas outras vezes, surgiu ao final uma cura.
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