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Justiça fecha o cerco à viúva de Pinochet

Uma década depois da morte do ditador chileno, os tribunais investigam o patrimônio milionário de Lucía Hiriart

Rocío Montes
Agusto Pinochet, no centro
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Na próxima quarta-feira, o magistrado Guillermo de la Barra pretende visitar a residência da viúva de Augusto Pinochet, Lucía Hiriart, de 93 anos, na zona oriental de Santiago do Chile. O ministro da Corte de Apelações vai interrogá-la pela primeira vez no processo que investiga o patrimônio da Fundação CEMA (Centro de Madres, ou “centro de mães”), que Hiriart liderou desde o golpe de Estado de 1973 até agosto. A fundação recebeu gratuitamente 236 propriedades públicas durante a ditadura militar (1973-1990). Uma década depois da morte de Pinochet, a Justiça pela primeira vez interrogará sua viúva por delitos de malversação de fundos públicos e apropriação indébita, pela obtenção e venda milionária desses imóveis.

Quase nada se sabe no Chile sobre Lucía Hiriart de Pinochet, que vive quase enclausurada em sua residência de La Dehesa, uma das zonas mais caras da capital. Desde a morte de seu marido, que completou dez anos neste sábado, mergulhou em seu mundo privado. Os chilenos parecem tê-la esquecido, exceto pelos rumores que circulam de vez em quando no Twitter sobre seu falecimento. Nos últimos meses, Lucía Hiriart − com quem o ditador teve cinco filhos − foi levada várias vezes ao Hospital Militar por causa de doenças respiratórias. A jornalista Alejandra Matus, autora da biografia não autorizada Doña Lucía, revelou que, a poucos dias de seu depoimento à Justiça pelo caso CEMA, ela está novamente no hospital, onde foi internada segunda-feira com bronquite.

“Depois da morte do patriarca, a família se desintegrou, as visitas são escassas e Lucía se sente muito sozinha”, assinala o livro de Matus, que revela sua rotina, aspectos desconhecidos de sua vida e a influência política que exerceu sobre o ditador. Publicado pela primeira vez em 2013, já está na nona edição impressa e nos últimos três anos foi um sucesso de vendas.

A primeira-dama do regime imprimiu seu olhar pessoal sobre o que devia ser o Chile por meio da Fundação CEMA, uma rede de centros de assistência a mulheres carentes

De ascendência basco-francesa, a primeira-dama do regime imprimiu seu olhar pessoal sobre o que devia ser o Chile por meio da Fundação CEMA, uma rede de centros de mães em que as mulheres pobres aprendiam diferentes ofícios. A fundação foi criada em 1954, mas Lucía Hiriart passou a controlá-la no começo da ditadura, assumindo a presidência. Com o passar dos anos, transformou-se em seu exército feminino próprio e sua principal ferramenta para dar ao Governo de seu marido um suposto caráter de integridade moral. Pouco antes da chegada da democracia, em 1990, o regime alterou os estatutos para que a Fundação CEMA ficasse nas mãos da mulher do comandante-chefe do Exército, cargo que Pinochet assumiu após deixar La Moneda. Em 1996 houve outra mudança de regras para que a instituição continuasse sob o comando de Lucía Hiriart mesmo que seu marido deixasse o comando do Exército, o que finalmente ocorreu em 1998.

Sempre pairou a suspeita sobre as complexas tramas que se escondiam atrás da fachada da Fundação CEMA, principalmente depois da revelação das contas secretas que Pinochet tinha no banco Riggs. Mas foram as investigações jornalísticas locais que começaram a revelar os segredos que a instituição escondia: pelo menos 236 propriedades acabaram passando para o nome da fundação nos 17 anos de ditadura e, de acordo com evidências reveladas pelos meios de comunicação do país, pelo menos metade das doações foi feita nos momentos finais do regime. O Governo de Michelle Bachelet iniciou uma ofensiva para conhecer efetivamente o número de propriedades estatais transferidas para a Fundação CEMA na ditadura e determinar o destino do dinheiro que a instituição obteve com a venda de 137 imóveis.

A missão do Centro de Madres, segundo seus próprios estatutos, é “a execução de atividades destinadas a proporcionar bem-estar espiritual e material à mulher chilena, especialmente àquela filiada a Centros de Mães ou outras organizações comunitárias ou de finalidade social”. O dinheiro da venda de imóveis deveria ter sido destinado a financiar estas atividades. Uma investigação jornalística do programa de televisão Contacto revelou, porém, que a maior parte dos escritórios da fundação está ociosa, embora ela continue recebendo significativas somas de dinheiro de cidades como Viña del Mar. “Esses imóveis foram utilizados para negócios”, afirmou Nivia Palma, a ministra de Bens Nacionais, em declarações à agência EFE. “Hiriart era a responsável jurídica.”

A Justiça, que reabriu a investigação em abril, tenta comprovar os supostos crimes de malversação de fundos públicos e apropriação indébita. Entre agosto e setembro, o juiz Guillermo de la Barra acolheu os pedidos do Conselho de Defesa do Estado para o embargo preventivo de 41 bens imóveis da fundação e de todos os seus ativos financeiros. Depois que estourou o escândalo, Lucía Hiriart apresentou sua renúncia à presidência da instituição.

A influência de Lucía sobre Augusto

Lucía Hiriart vem de uma família democrática e antimilitarista que compôs a elite política do início do século XX. Filha de um senador, aos 16 anos ela conheceu Pinochet, então com 23. Era um militar simples que ficou encantado com a moça, com quem se casou em 1943. O próprio Pinochet escreveu em suas memórias que foi sua mulher que o impulsionou a participar do golpe de Estado, 30 anos mais tarde. "Uma noite, minha mulher me levou ao quarto onde dormiam meus netos e me disse: 'Eles serão escravos porque você não foi capaz de tomar uma decisão'", escreveu o general em suas memórias, Camino Recorrido ("caminho percorrido").

A influência de Lucía Hiriart não desapareceu com o tempo. Em abril de 1999, quando Pinochet estava detido fazia sete meses em Londres à espera de uma possível extradição para a Espanha, sua mulher solicitou à junta de direção da Fundação CEMA que vendesse “nas melhores condições possíveis” 17 propriedades em nome da instituição. De acordo com a investigação judicial, parte do dinheiro da venda das propriedades está investida em depósitos a prazo ou em fundos mútuos. O Estado quer que se cumpra a lei e sejam devolvidos ao fisco os bens que lhe pertencem e ainda estão nas mãos da fundação.

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