Construir Bento Rodrigues
No plano da reparação são necessárias soluções técnicas excelentes. Não devemos preteri-las em favor de arremedos
Bento Rodrigues está no mesmo lugar. As fotos publicadas após o rompimento da barragem mostram uma lama viscosa que se espalhou pelas ruas do distrito. Hoje essa mesma lama secou e ficou com um tom terracota, com que o vento e poeira se encarregaram de tingir os escombros das casas, unindo tudo numa mesma massa visual que contrasta com o verde escuro das montanhas em volta e com o límpido azul do céu mineiro.
Entre moradores, corporação e Estado, um consenso decanta pela discussão conjunta e pela falta de disposição para se contestá-lo: é impossível que os moradores voltem para aquela área. Entretanto, seis meses depois da tragédia, quando visitamos por quatro dias Mariana como parte de disciplinas do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, não havia nada além desta resolução e de medidas gerais de contingência. Um ano depois, pouco ainda aparece como perspectiva para o futuro das cidades atingidas.
Na região de Mariana, esperávamos colher materiais para entender o processo de reparação do maior desastre ambiental da história do país. Entrevistamos moradores, visitamos o distrito de Bento Rodrigues e passamos na fazenda de Nova Lavoura, onde supostamente será construída a nova vila. Nosso objetivo era conceber exercícios de projeto com um intuito simples: projetar a Nova Bento Rodrigues e seu território como uma comunidade modelo de apropriação sustentável. Acreditamos que, se a lama deixou uma mácula de contaminação ao longo da Bacia do Rio Doce, as novas cidades terão de ser feitas como contraponto a uma história persistentemente predatória da região e de seus recursos.
Trata-se de um exercício estudantil básico: é preciso treinar futuros profissionais para enfrentar situações de emergência urbana, e seria rico cotejar nossas premissas com o mundo real. No entanto, encontramos um vazio quando chegamos em Mariana, a ponto de sentir que nossas ideias tinham um assustador sabor de pioneirismo.O projeto urbano para Bento Rodrigues não é um assunto discutido na mídia. São noticiadas as nuances da tragédia, suas consequências e o sem-fim de imputações e recursos trocados entre empresa e Estado. Mesmo quando o terreno foi escolhido, nenhuma palavra foi dita sobre como vai ser esse novo local.
Quando entrevistamos os moradores, eles próprios tinham ideias em abstrato, mas nada concreto havia sido feito – ou pelo menos que tenha sido discutido com eles. Nas conversas, ficou claro o interesse menos no futuro do que com a cidade varrida. Assim que chegamos, esperávamos que nos fosse mostrada a lama, o flagelo e um inventário do espólio que a colocou no mapa pela primeira vez. Duas mulheres atingidas, nosso primeiro contato direto, preferiram nos mostrar fotos no celular de suas casas, das árvores, de seus quintais e das festas que aconteciam em seus terreiros. Apesar da seriedade com que tratavam a situação, não se portavam como vítimas. Enquanto exibiam as imagens, paravam para falar dos sobrinhos, sorriam ao lembrar de alguma situação que ocorreu no lugar que aparecia na tela pequena e se dispersavam conversando sobre suas memórias.
No dia seguinte, os 48 integrantes da nossa expedição se dividiram em núcleos e visitaram as casas provisórias de outros habitantes. Diferentes pontos de vista e opiniões sobre as questões práticas recaiam em um denominador comum: Bento Rodrigues é insubstituível. Parte da razão que levou à escolha da fazenda de Nova Lavoura é por sua proximidade com o antigo povoado, que segundo alguns habitantes deveria se converter em um memorial, um local de reflexão e de visitação aberta.
Se a lama deixou uma mácula de contaminação ao longo da Bacia do Rio Doce, as novas cidades terão de ser feitas como contraponto a uma história persistentemente predatória da região e de seus recursos
O açúcar no fogão
Em junho, Bento Rodrigues estava interditada pela defesa civil no grau máximo de alerta. Mesmo assim, duas moradoras se animaram a ir conosco no distrito. Era domingo e fechamos um pequeno destacamento e entramos na tão fotografada Bento Rodrigues tomada pela lama. A parte baixa da cidade foi completamente varrida. Sobraram as fundações das casas, nada mais. “Aqui era a casa daquela moça que você conheceu”, “ali era o bar aqui da rua”, diziam as moradoras apontando um local que agora é mais um anônimo morrote de lama. Uma delas ensaia entrar no bar e pedir uma bebida. Elas entram nas suas antigas casas cujo piso subiu pelo menos um metro da altura original. O topo do fogão a lenha ainda tinha um saco de açúcar em cima, intacto. “Só mesmo você, que adora fazer doces, para esquecer o açúcar sobre o fogão”, diz uma para a outra. Na saída, cruzamos com um homem que passeava entre as ruas. Era um dos desabrigados que decidiu, no domingo, “voltar para casa e dar uma volta”.
Pode parecer pitoresco, mas passados seis meses, a insistência em ver casas fantasmas no meio daquela desolação era um claro indício de que se negou a essas pessoas o direito ao luto. A perda de algo querido, seja uma pessoa ou uma cidade, leva a uma grande perda do senso de identidade. A ausência de perspectivas futuras leva a uma ternura demasiada pelo passado. Apesar de terrível, o acidente não pode ser revertido. A única forma de enfrentamento do luto é dar subsídio para novas identidades, reconstrução da comunidade com novos lastros que prestem homenagem aos antigos, mas que caminhem em uma outra direção.
Isso se agrava na ausência do urbanismo nas discussões sobre a reconstrução da vida dessas pessoas, de repente desalojadas para dar espaço à lama. Algumas, como Barra Longa e Paracatu de Baixo, continuam habitadas, sem perspectivas de desenho de uma interface com o que ficou dos rejeitos. Bento Rodrigues, por sua vez, não tinha (e ainda não tem, ao menos publicamente) previsão de desenho, o que sinaliza dois caminhos sombrios. O primeiro, ausência prática: não vai ter cidade tão cedo e os moradores ficarão num limbo. O segundo é que a nova cidade seja feita em um arremedo apressado de casas-carimbo de qualidade dúbia sem grandes preocupações para além de empilhar tijolos. Não será uma novidade. Assim foram as reconstruções das cidades tomadas pelas águas nas construções das usinas hidrelétricas no país. Nos programas de habitação econômica promovidos por todas as esferas do Estado, pululam casas idênticas e mal projetadas por todo o Brasil.
Bento Rodrigues pode ser mais uma entre tantas, mas queremos mesmo que essa tragédia seja resolvida do mesmo modo mal feito que fizemos até aqui? Trata-se de aproximadamente 250 unidades habitacionais em uma área que conta com amplo acesso a infraestrutura, ou seja, é um problema elementar do ponto de vista urbanístico, é algo que pode ser desenhado e construído com velocidade, economia e transparência. Existem questões de licenciamento ambiental, mas isso não deve ser álibi para uma morosidade que sinaliza a persistente incapacidade que temos, no Brasil, de lidar não só com as grandes questões de planejamento, mas também com as pequenas.
O topo do fogão a lenha ainda tinha um saco de açúcar em cima, intacto.
Nossa disciplina foi concluída com diversas propostas viáveis e, no limite, simples. Não é necessário desenhar um marcos ou cidades-modelos, mas somente uma construção digna, que por sua qualidade urbana crie novas referências. Isso não trará Bento Rodrigues de volta, o que é lastimável. É uma obviedade que precisa ser escrita: esse crime não deveria ter ocorrido. Mas também no plano da reparação são necessárias soluções técnicas excelentes, e não devemos preteri-las em favor de arremedos.
Rafael Urano Frajndlich é professor de fundamentos, teoria e projeto no curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp. Organizou e acompanhou a visita dos alunos à região do desastre de Mariana com os também professores Evandro Ziggiatti Monteiro e Emilia Wanda Rutkwoski.
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