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É machista dizer à sua colega de trabalho “como você está bonita hoje”?

Sentar-se no ônibus de pernas abertas, colocar brincos na filha recém-nascida... Quatro feministas combativas respondem

Personagens da série espanhola Caméra Café observam com interesse sua colega de trabalho.
Personagens da série espanhola Caméra Café observam com interesse sua colega de trabalho.

A julgar pelos números, o Brasil continua sendo um país machista. Segundo a ONU, a taxa de feminicídios no país é a quinta maior do mundo: 4,8 de cada 100.000 mulheres são mortas por questões de gênero. Já segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que divulgou nesta quinta-feira o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um estupro a cada 5 horas ocorreu em 2015 no país. No quesito desigualdade salarial, o Fórum Econômico Mundial apontou que o Brasil é um dos 15 países mais desiguais do mundo, já que as mulheres recebem pouco mais que a metade dos homens e trabalham mais, se considerado o trabalho remunerado e não remunerado. Além disso, os homens estão mais presentes no mercado de trabalho –uma taxa de 81% para eles e de 54% para elas.

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Esses são os grandes dados, os óbvios. Mas, de onde vem esse machismo? Os especialistas apontam a herança patriarcal e ressaltam a importância da educação para os desenraizar. No entanto, as pesquisas não apresentam dados agradáveis: os estereótipos de gênero continuam e muitos deles se perpetuam nas gerações mais jovens. Um total de 48% dos adolescentes e jovens –entre 16 e 24 anos– acham errado que a mulher saia sem seu namorado. Destes, 80% acreditam que mulheres não devam ficar bêbadas em baladas e festas, segundo um levantamento feito pelo Instituto Avon e DataPopular em 2014.

“Nunca vi um homem dizer a outro homem: 'Você está muito bonito'

Esse mesmo relatório constata que entre os jovens persistem ideias como a de que mulheres não devem ter muitos ficantes e que elas não devem ir para a cama no primeiro encontro. O machismo prevalece e alguns adolescentes não o percebem como tal. Mas, e os adultos? Majoritariamente rejeitam expressões extremas de machismo, mas há situações nas quais a linha se torna muito mais difusa. É machista dizer a uma colega de trabalho que está bonita? Escutar reggaeton? E pôr brincos na filha de poucos anos de idade?

Por isso fizemos algumas perguntas a quatro combativas feministas. Aqui as apresentamos: June Fernández, coordenadora da revista Pikara Magazine; Nuria Varela, jornalista e autora de livros como Feminismo para Principiantes, A voz Ignorada e Íbamos a Ser Reinas (Íamos ser Rainhas); Barbijaputa, escritora e colunista do jornal espanhol eldiario.es; e Lucía Lijtmaer, jornalista e escritora.

É machista sentar-se no metrô ou no ônibus com as pernas abertas, ocupando mais espaço que uma mulher?

Barbijaputa: "Obviamente é machista. E é uma prática que só eles exercem: ocupar mais espaço do que necessitam e ficarem confortáveis em um espaço que é de todas, embora assim invadam o espaço que corresponde a nós. Isso é machista demais”.

June Fernández: "Essa tendência é resultado de uma socialização na qual desde a infância se permite aos homens ocupar mais espaço que as mulheres. Desde meninas somos orientadas a fechar as pernas, porque em nós esse gesto é considerado indecoroso. Pensemos no pátio da escola: é comum que esteja tomado pelos meninos jogando futebol enquanto as meninas ficam às margens. Em inglês se utiliza a expressão manspreading, traduzida com frequência como "abrir demais as pernas". Quem abre as pernas no metrô não o faz por machismo, mas por uma inércia derivada de que está acostumado a ocupar muito espaço com total tranquilidade”.

Nuria Varela: "Sim, é machista. É a atitude de ocupar todo o espaço público”.

“Desde meninas somos orientadas a fechar as pernas, porque em nós esse gesto é considerado indecoroso. Pensemos no pátio da escola: é comum que esteja tomado pelos meninos jogando futebol enquanto as meninas ficam às margens.”

Lucía Lijtmaer: "Sobretudo, é falta de educação".

É machista convidar uma garota para beber algo [pagando para ela]?

B.: "Sim, se você só convida garotas. Está fazendo isso pelo gênero dela e não por qualquer outro motivo”.

J. F.: "A convenção social, felizmente em desuso, de que o homem paga. Tem a ver com esses papéis nos quais o homem é o provedor e utiliza seu dinheiro como elemento de sedução. Defendo relações igualitárias nas quais às vezes paga ele, às vezes, ela, às vezes dividem”.

N. V.: "Se sempre se faz isso e por obrigação, sim. Convidar para beber é uma atitude normal, mas tanto com homens como mulheres”.

L. L.: "Não é machista, a menos que você queira algo em troca".

É machista dizer a uma colega de trabalho: "Como você está bonita hoje"?

B.: “É machista se só faz isso com mulheres, o que é sempre o caso. Nunca vi um homem dizer a outro homem: 'Você está muito bonito'. O galanteio por si só parece inofensivo, mas é a prova de que eles se sentem com a autoridade de te interromper no que você está fazendo para te dar pontos pelo teu físico, sem se importar como você poderá se sentir. Por que dar por certo que ela vai se sentir bem, e não sexualizada no meio de um dia de trabalho? Por que dar por certo que ela vai ficar contente pelo que ele lhe disser de seu físico quando, talvez, necessite que seja elogiado pelo seu trabalho, no qual está se esforçando”.

J.F.: “Acho que devemos analisar também a atitude, a comunicação não verbal, e observar se nosso comentário pode incomodar. Também devemos levar em conta que nós, mulheres, recebemos frequentemente comentários sobre nosso físico que, de forma isolada, podem parecer inofensivos, mas por acumulação acabam afetando. Não precisamos dessa aprovação masculina; na verdade, um dos elementos da cultura machista é nos educar para que precisemos dela. Pensemos se elogios desse tipo também são feitos por nós aos colegas homens”.

N.V.: “Depende. A diferença entre dizer uma frase agradável e fazer assédio ‘sutil’ depende de quem a diz, do grau de confiança, do tom, da reiteração... Que todos os dias as mulheres tenham de passar por um exame sobre o seu aspecto ao chegar ao trabalho é machista e, também, um pesadelo”.

“Sou fã de Guns N’ Roses, apesar das letras machistas. Isso não me transforma em machista, só em uma pessoa crítica.”

L. L.: “Não tenho uma opinião a respeito: não acho que seja um dos nossos principais problemas sociais”.

É machista ceder a passagem ou o lugar para uma mulher?

B.: “Se você é homem e só faz isso com mulheres, é claro que é machista, porque é paternalista e condescendente. O que os faz pensar que não podemos segurar uma porta ou que temos mais necessidade de nos sentar do que eles?”.

J. F.: “Os gestos cavalheirescos podem ser considerados como machismo benevolente, que parte de velhos preconceitos nos quais a mulher é considerada ‘o sexo frágil’, que devemos proteger e cuidar. Mas não acho que se trate de eliminar essas práticas, mas de que todas as pessoas cedam a passagem a outras por educação, independentemente do nosso gênero”.

N. V.: “Se isso é feito por ser mulher, é machista. Ceder a passagem ou o lugar é boa educação, independentemente de ser homem ou mulher”.

L. L.: “Só é machista se você acha que precisa ir à frente porque não sabe abrir a porta sozinha”.

É machista você gostar de reggaeton?

B.: “O reaggeton tem letras além do machismo: é misoginia pura. Tenho amigas que gostam de dançá-lo e que ao mesmo tempo têm consciência do que representa para elas como mulheres. No meu caso não é compatível: me dá muito nojo”.

“Por que existe essa necessidade de diferenciar o gênero dos bebês? Por que a primeira coisa que as pessoas perguntam quando você fica grávida é se será menina ou menino?”

J.F.: “Não acho que haja gêneros musicais mais machistas do que outros. Há machismo nas letras e nos vídeos. Trata-se de fazer um consumo crítico e a partir daí nos darmos permissão para as contradições: ‘A letra é demencial, mas, veja, eu adoro essa música’. E mais do que injuriar um artista ou um determinado gênero, devemos tornar visíveis alternativas, como o reggaeton feminista, pois ele existe”.

N. V.: “A maioria das letras de reggaeton, mais do que machista, faz diretamente apologia da violência. Isso não tem nada a ver com a música, que pode, obviamente, agradar ou não. O problema são as letras”.

L.L.: “Por que seria machista? Se você se refere às letras, eu acho que – como qualquer arte – são um espaço de jogo metafórico e simbólico. Eu não gosto das letras que menosprezam as mulheres. Por exemplo, sou fã do Guns N’Roses apesar de suas letras machistas. Isso não me torna machista, apenas acrítica”.

É machista a atual divisão da licença maternidade?

B.: “Tudo o que seja diferenciar por gênero me parece machista. O fato de ela dar à luz não significa que se deva conceder mais tempo e espaço para alimentar e cuidar do que para eles. Nos cria uma sobrecarga de responsabilidades que deveriam ser compartilhadas”.

J.F.: “A disparidade na duração desigual das licenças maternidade e paternidade são um reflexo de uma sociedade na qual se estabeleceu que a responsabilidade de cuidar recai sobre a mãe. Isso continua sendo assim apesar da incorporação maciça das mulheres ao mercado de trabalho. É escassíssima a porcentagem de homens que pede redução da jornada de trabalho para se dedicar a cuidar do filho. A Plataforma para Licenças de Paternidade Iguais e Intransferíveis (PPINNA) argumenta que a mudança de raiz ajudaria para que os homens se envolvessem mais e que as mulheres não sejam tão discriminadas no contexto do trabalho. É um debate interessante e ao qual não vejo soluções simples”.

N.V.: “Sem dúvida, é machista. As licenças para o cuidado dos filhos devem ser de maternidade e paternidade, iguais e intransferíveis. A situação atual pressupõe que quem cuida são as mulheres”.

“Como temos o mesmo aspecto quando somos bebês, é importante para o patriarcado que haja algo que nos diferencie: os brincos, a roupa rosa, etc. É fomentar os estereótipos de gênero”

L.L.: “Sim, é machista. Os países nórdicos (como Suécia, Noruega e, em menor escala, Islândia) podem distribuir essas licenças entre pai e mãe a partir de um total de 480 dias. Na Suécia, há ainda 60 dias que são obrigatórios para o pai.”

É machista justificar um comportamento diferente do habitual numa mulher “porque está menstruada”?

B.: “Só nós podemos falar de como nossa menstruação nos afeta, em que momento e em que situação. Somos nós que sofremos e lidamos com ela. Um homem está sendo machista quando procura motivos em nossa menstruação para explicar algo que não o agradou do que fizemos ou falamos. Porque, dessa forma, ele considera que não quisemos fazer ou dizer aquilo. E tende a agir com condescendência ou a nos ignorar, sem que nós tenhamos dito que se deve a isso [à menstruação]. Essa coisa de falar “deixe, ela deve estar menstruada” é de um machismo que assusta.”

J.F.: “É machista desacreditar ou ridicularizar uma mulher dizendo: ‘O que foi? Está menstruada?’. Também é machista e androcêntrico [centrado no ponto de vista masculino] que a menstruação continue sendo um tabu, e que uma mulher com sintomas associados à menstruação que dificultem sua vida seja alvo de piada e incompreensão.”

N.V.: “Sobretudo, é uma bobagem.

L.L.: “Sim, é machista. E é uma crença arraigada na história da ciência: o corpo da mulher não foi considerado normal na Espanha até os anos oitenta. Nunca foram levados em conta seus sintomas ante qualquer doença até então, e por isso considera-se que seja um corpo estranho.”

É machista colocar brincos em sua filha quando ainda é bebê?

B.: “É uma forma de nos diferenciar. Como temos o mesmo aspecto quando somos bebês, é importante para o patriarcado que haja algo que nos diferencie: os brincos, a roupa rosa, etc. É fomentar os estereótipos de gênero, posicionar os bebês na sociedade, para que sejam percebidos pelos demais – e não só pela família, que sabe seu gênero – de uma ou outra forma, pois logo será esperado deles certos comportamentos em função de seu gênero. Para que eles e elas percebam as diferenças, as nuances, que mensagens vão para uns e quais mensagens vão para elas: ‘os meninos não choram’ e ‘as meninas não se sujam’.

J.F.: “Não diria que é machista, e sim que vivemos numa sociedade sexista que penaliza a ambiguidade de gênero, uma sociedade em que o menino “afeminado” e a menina “masculina” são insultos. Por que existe essa necessidade de diferenciar o gênero dos bebês? Por que a primeira coisa que as pessoas perguntam quando você fica grávida é se será menina ou menino?”

N.V.: “É uma marca de gênero. Se não fazemos isso com os meninos, por que fazemos com as meninas? Seria muito melhor esperar até que ela possa decidir.”

L.L.: “A imposição de qualquer crença religiosa ou estética a um menor que não tem capacidade de decidir sempre me parece um terreno pantanoso.”

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