Tostão: “Esse oba-oba em torno do Tite é perigoso”
Campeão mundial em 1970, jogador lança autobiografia e explica defasagem do futebol brasileiro
Atacante titular do lendário Brasil campeão da Copa do Mundo de 1970, Tostão foi um dos maiores jogadores da história do País. A carreira dentro das quatro linhas foi tão curta quanto vitoriosa: durou apenas 10 anos, mas já seria suficiente para preencher com folga um livro sobre o ídolo do Cruzeiro, que chegou a ser comparado a Pelé quando o Rei ainda estava no auge. Só que a vida de Tostão foi muito além do futebol. Obrigado a se despedir dos gramados em 1973, aos 26 anos, por um problema no olho esquerdo, formou-se em medicina alguns anos depois, exerceu a profissão e só voltou a se relacionar com o futebol na década de 1990, quando virou colunista e comentarista. Agora, lançou sua autobiografia Tempos vividos, sonhados e perdidos (Companhia das Letras) e, em entrevista por telefone ao EL PAÍS, falou sobre o trabalho do técnico da seleção brasileira, Tite, e explicou por que o futebol brasileiro ficou tão defasado nos últimos anos.
Pergunta. Como você avalia o início do trabalho do Tite na seleção?
Resposta. Muito bom. É até surpreendente, pela velocidade dos resultados. O time ganhou, jogou bem. Só que no Brasil é assim: começou bem, tudo fica uma maravilha, o Tite é um gênio. Qualquer coisa que ele fala é genial. Se o Dunga falasse a mesma coisa, ele era uma besta. Eu só acho que essa euforia, esse oba-oba é perigoso porque ainda tem muitas coisas para corrigir e melhorar.
P. Mas você vê evolução no jogo da seleção em relação ao que estava sendo feito nos últimos anos?
R. Sim. Aquilo que a gente via no Corinthians do Tite, e era uma exceção no Campeonato Brasileiro, já começou a aparecer na seleção. Troca de passes, triangulações, o time procura roubar a bola mais à frente. São todas características do futebol mundial, não é nada inovador. É o que é feito na Europa há muitos anos e hoje está começando aqui. O Tite sabe bem fazer isso. E ele é uma pessoa amável, sabe tratar as pessoas, diferentemente do Dunga, que era muito bronco. Há uma esperança positiva grande, mais ainda é cedo para toda essa euforia.
P. Antes de o Tite ser contratado, você disse que queria ver o argentino Jorge Sampaoli no comando da seleção. Por que os técnicos argentinos hoje são tão superiores aos brasileiros?
Qualquer coisa que Tite fala é genial. Se o Dunga falasse a mesma coisa, ele era uma besta
R. Existe uma discussão sobre por que não existem técnicos brasileiros na Europa e tantos argentinos estão lá. Não só lá mas nas seleções da América do Sul, tanto é que das dez seleções nas eliminatórias, seis são argentinos. A razão principal é que os técnicos brasileiros ganham demais aqui no Brasil e não querem ir para times pequenos na Europa para começar a carreira. Por soberba, os técnicos brasileiros acham que têm conhecimento para treinar o Barcelona, o Real Madrid ou o Bayern. Essa prepotência, aliada ao salário altíssimo que eles ganham aqui, acaba dando nisso. Outra razão é a língua. Os treinadores brasileiros são preguiçosos e não querem aprender espanhol, inglês ou francês. E os técnicos argentinos têm essa facilidade a mais, pelo menos na Espanha.
P. A maioria dos técnicos brasileiros está ultrapassada?
R. Os técnicos brasileiros, depois de ficarem muito ultrapassados por um período, estão se renovando, principalmente depois da Copa. Eles acordaram. Até a Copa, 99% deles ficava indignado quando alguém dizia que eles estavam defasados em relação aos europeus. Depois da Copa, isso mudou. Hoje eles estão se vangloriando de fazer estágio com Guardiola, Mourinho e outros grandes treinadores europeus.
P. O Tite ajudou o futebol brasileiro a se atualizar?
R. Sim, ele é o grande precursor desse movimento. Antes da Copa, o Corinthians campeão do mundo em 2012 jogava como um time pequeno inglês. Era uma inovação no futebol brasileiro. Tinha uma rigidez tática muito grande. Depois da Copa, um grande número de técnicos passou a jogar parecido com o que é feito na Europa. O futebol brasileiro ainda tem muito vício dos últimos 20 anos, quando se valorizou demais a jogada aérea, o excesso de faltas, o jogo truncado. Ainda existe esse vício, mas vem sendo corrigido. Os times brasileiros estão se modernizando.
O que foi feito nos últimos 20 anos era o oposto da história do futebol brasileiro dos anos 60 e 70. Naquela época o Brasil tinha um time que colocava a bola no chão, tinha um futebol envolvente. É o que fazem hoje os grandes times do mundo, com mais velocidade e intensidade. Então o Brasil foi de símbolo de futebol bem jogado e bonito ao oposto, a ser o exemplo de futebol ultrapassado. Agora está voltando a praticar o futebol de acordo com o que se joga hoje.
P. E quanto os jogadores são responsáveis por essa falta de evolução do futebol brasileiro? Está acontecendo um problema na formação dos jogadores?
R. Sim. O futebol brasileiro ficou desatualizado e a deficiência coletiva influenciou negativamente a formação de jogadores. Uma coisa puxou a outra. O exemplo mais clássico disso é que nos últimos 20 anos o Brasil não teve um único grande jogador de meio-campo. E isso aconteceu porque houve uma divisão no meio-campo entre os volantes, que jogam marcando mais atrás, e dois meias, que jogam lá na frente, perto da área adversária. O jogo perdeu troca de passes nesse meio. Os espanhóis e os alemães fazem isso muito bem. Isso era o que o Brasil tinha de melhor na minha época e desapareceu. Tivemos Gérson, Rivellino, Clodoaldo, depois Falcão, Cerezo. É o que fazem Iniesta, Rakitic, Modric e Kroos, por exemplo, e fizeram Xavi e Schweinsteiger.
Essa característica que os europeus mais incentivaram, os brasileiros desvalorizaram. Criamos muitos dribladores de área. Esse é apenas um exemplo de como o futebol brasileiro foi por um caminho errado. Agora o Brasil começa a tentar recuperar o tempo perdido. O Tite tem essa qualidade. Ele valoriza muito essa troca de passes desde a defesa. Isso era característica do jogo do Corinthians e ele está tentando fazer na seleção, mas não temos mais um grande jogador nessa posição.
P. Renato Augusto, Paulinho e Giuliano estão fazendo essa função...
R. Sim, mas é diferente de um Kroos, um Modric, um Iniesta, um Busquets. Mas a ideia é a mesma.
P. Qual sua opinião sobre o Neymar. Você acha que ele será o melhor jogador do mundo?
R. Isso eu não sei, mas não há dúvida de que ele é um fenômeno, um espetáculo de jogador. Ele faz muito bem tudo o que um atacante precisa fazer. Chuta bem, dribla bem, é inteligente. Passa bem, bate falta e é veloz. Ele ainda não é, mas ele tem grande chance de se tornar o segundo maior jogador da história do futebol brasileiro, abaixo só do Pelé.
Neymar ainda não é, mas tem grande chance de se tornar o segundo maior jogador da história do futebol brasileiro, abaixo só do Pelé
P. Maior do que Ronaldo e Romário?
R. Sim, porque ele é completo, faz de tudo. Com Romário e Ronaldo era uma coisa mais específica. Já o Neymar é igual o Messi, faz de tudo no jogo. Ele só não é melhor do mundo porque está na mesma época do Messi e do Cristiano Ronaldo. Houve jogadores que foram melhores do mundo, como Rivaldo, Figo e Kaká, mas o Neymar está acima deles. É claro que ele precisa melhorar em algumas coisas. Ainda fica muito irritado em campo, cava muita falta, às vezes ele cria muito atrito com os adversários. Mas os números dele são uma coisa impressionante.
P. Você fala no livro que as grandes gerações apareceram de 12 em 12 anos desde 1958. A próxima, então, seria a de 2018. Você acha que isso vai se confirmar?
R. Não é coincidência. É o tempo de iniciar e terminar uma geração. 1958, 1970, 1982...a de 1994 não foi assim tão boa mas foi vencedora e tinha Romário e outros jogadores excelentes. Em 2006, o Brasil tinha sete jogadores na lista dos melhores do mundo. Tinha Ronaldo, Ronaldinho, Robinho, Adriano, Kaká, Cafu, Roberto Carlos. A turma de 2006 era para ter sido campeã do mundo com facilidade, dando show, o que não aconteceu por uma série de motivos. Mas era uma geração espetacular individualmente. Nessa conta, a próxima grande geração seria a de 2018. Eu não espero que seja espetacular porque só temos o Neymar como grande craque, mas temos outros grandes jogadores e alguns que estão em evolução. Temos zagueiros e laterais que estão entre os melhores do mundo. Gabriel Jesus é uma esperança. Douglas Costa é um excelente jogador, assim como Willian e Coutinho. Só que não consigo ver um grande time sem um craque no meio-campo, e nós não temos. Dificilmente será um timaço, mas pode sim ganhar a Copa do Mundo.
P. A Copa de 2014 pode prejudicar essa geração ou eles vão chegar em 2018 querendo e precisando apagar o que aconteceu?
R. Exato. Eu falo isso no livro. O fracasso de 2014 será mais um fator para o sucesso em 2018. Isso aconteceu em 1966 e o Brasil depois teve um time espetacular em 1970. Em 1978 tinha um time fraco, em 1982 tinha um timaço. A seleção de 1994 tinha vários jogadores que fracassaram em 1990. O problema é que o trauma do 7 a 1 foi muito grande. Foi uma coisa muito expressiva.
P. Fora de campo, o que esperar da CBF nos próximos anos?
R. A prisão do [José Maria] Marín e o fato de ter ficado claro que existia corrupção e esse tipo de relação perniciosa entre as federações e os clubes solidificou o que já era óbvio, que a estrutura é péssima para o futebol brasileiro. O ideal é que houvesse uma completa mudança na estrutura de direção do futebol brasileiro, com pessoas independentes no comando, mas isso não aconteceu. Del Nero e Marín são da mesma turma do Ricardo Teixeira. Esse é um problema no futebol brasileiro. Mas agora eles estão muito mais vigiados e sabem que não podem sair da linha porque todo mundo vai saber.
P. E quanto o que acontece fora de campo atrapalha o futebol dentro de campo?
Não consigo ver um grande time sem um craque no meio-campo, e nós não temos. Dificilmente será um timaço, mas pode sim ganhar Copa
R. Isso acaba ficando separado na seleção brasileira, que pode ter um grande time e ter sucesso independentemente dos negócios da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Só que o futebol brasileiro fica muito prejudicado. É preciso haver uma grande mudança para melhorar o futebol brasileiro. Mas como a 90% da seleção é formada por jogadores que estão fora, não prejudica tanto.
P. Você jogou na seleção durante a ditadura no Brasil. Havia interferência dos militares na equipe?
R. Isso é uma prova de que as coisas são separadas. É possível a equipe ter grande sucesso independente de quem está na direção. Não havia interferência direta, apesar de haver militares na equipe da comissão técnica, na parte de preparação física, por exemplo. Mas a CBD (Confederação Brasileira de Desportos) naquela época dava todo o apoio ao futebol porque sabia que o sucesso dentro de campo amenizava as coisas fora de campo. Então havia um apoio muito grande para que a seleção funcionasse bem. E os militares que estavam ali não interferiam porque não entendiam nada do jogo. É mais ou menos o que acontece hoje. A seleção funciona separadamente do que acontece na CBF.
P. Tem alguma pessoa que você gostaria de ver no comando do futebol brasileiro?
R. Não consigo pensar em ninguém que eu conheça. Precisa ser alguém que se preparou para se tornar dirigente de futebol. Me lembro de que o Leonardo foi falado, mas não sei se seria a pessoa mais indicada. Ele foi jogador, técnico e dirigente na Europa, então parece uma pessoa preparada. Fala bem, é atualizado. Não estou dizendo que ele seria essa pessoa porque não conheço ele. O problema é que as pessoas que têm valor são podadas e impedidas de crescer no modelo atual.
P. Por quê?
R. Porque existe uma estrutura corrompida da CBF com as federações e os clubes. É o mesmo grupo que comanda, todos são ligados. Então, se surge um dirigente de clube ou federação com conhecimento e capacidade para se tornar um dirigente da CBF, ele não chega lá. É impedido pela estrutura. Mas como é que muda isso, se a CBF é uma entidade particular e o governo não pode interferir? Uma das possibilidades seria essa, mas hoje o Brasil tem tantos problemas gravíssimos que o futebol fica uma coisa à parte.
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