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Emaranhados na família

A evolução humana já não se explica como uma simples cadeia linear de elos perdidos

Esculturas hiper-realistas de hominídeos criadas por Elisabeth DaynèsVídeo: Museo de la Evolución Humana (Burgos)
Javier Sampedro

Já faz sete anos que comemoramos o 150º aniversário da publicação de A Origem das Espécies, o livro que fundou a biologia moderna e a obra de Darwin mais importante para os cientistas profissionais. Mas ainda temos cinco anos para celebrar o 150º aniversário de outro livro de Darwin que, com certeza, é muito mais importante para as ciências sociais, para as humanidades e para a cultura em geral, A Descendência do Homem. Porque foi aqui, 12 anos depois, onde Darwin desenvolveu o corolário mais escandaloso e pioneiro da teoria da evolução: que nossa espécie não tem nada de especial, nada que a diferencie do grande esquema das coisas biológicas nem qualquer relação transcendente com a divindade, e sim que é uma mera variação dos nossos primos, os macacos, de nossos primos em segundo grau, os mamíferos, e todas as espécies que povoam este planeta velho e solitário, nosso bairro do cosmos.

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Curiosamente, e sem o conhecimento de Darwin, a primeira evidência de uma espécie humana primitiva e extinta havia sido descoberta três anos antes da publicação de A Origem das Espécies. Em 9 de setembro de 1856, um grupo de trabalhadores que fazia escavações nas proximidades de Düsseldorf encontrou, em uma caverna, 16 ossos fossilizados. Pensaram que eram de um urso, mas acertaram ao decidir levá-los ao professor de uma cidade vizinha, caso fossem de alguma utilidade para a ciência. E como foram. O professor, que se chamava Johann Carl Fuhlrott, percebeu que os ossos “eram muito antigos e pertenciam a um ser humano muito diferente do homem contemporâneo”. Havia descoberto o homem de Neandertal.

O século XX contemplou episódios gloriosos na busca do elo perdido ou os estágios intermediários na evolução de nossa espécie a partir de seus ancestrais símios. E produziu uma cativante história de ascensão progressiva aos céus da consciência, da inteligência e da transcendência moral que nos representam.

Passando a limpo uma crônica um pouco mais confusa, a sucessão de elos perdidos ficou mais ou menos assim: há seis milhões de anos éramos iguais aos chimpanzés; há quatro milhões de anos, os australopitecos evoluíram (como Lucy), já bípedes, mas ainda com um cérebro de meio litro; há dois milhões de anos apareceu o Homo erectus, cujo crânio havia dobrado de tamanho até um litro, utilizava ferramentas e foi a primeira espécie humana a deixar a África; e nossa espécie, o Homo sapiens, revela-se como uma recém-chegada à grande história do planeta, com pouco mais de 100.000 anos, quase um litro e meio de crânio e caracterizada desde o início por ferramentas avançadas e por uma cultura não apenas inovadora, mas também variável e criativa, cuja representação gráfica máxima são as pinturas rupestres de Altamira e Lascaux.

A ciência não tem como objetivo apenas descrever a realidade — que é a parte chata —, mas também compreendê-la. A esperança de um pesquisador é que, à medida que mais dados são obtidos e as teorias são refinadas, comece a ser vislumbrado um modelo do mundo cada vez mais simples e compreensível. Infelizmente, este não tem sido o caso das pesquisas sobre a evolução humana nas últimas décadas, e as coisas só ficaram ainda mais complicadas nos últimos anos. As escavações paleontológicas — da África do Sul até Atapuerca — e os espetaculares avanços da genômica emaranharam o quadro substancialmente. Mas essa é a mensagem que a realidade nos transmite. A simplicidade e o entendimento profundo terão de esperar.

Um exemplo perfeito de complicação inesperada é o hobbit (Homo floresiensis), descoberto em 2004 na ilha de Flores, um reduto pouco explorado do sul da Indonésia. Com um metro de altura e capacidade craniana de um australopiteco ou de um chimpanzé, mas inteligente o bastante para lidar com ferramentas de pedra e, talvez, para ter chegado navegando à ilha, o homem de Flores — que na realidade era uma mulher — viveu até há apenas 18.000 anos e, portanto, havia coexistido com nossa espécie durante 20 milênios. O hobbit se encaixava em nosso modelo da evolução humana tanto quanto um burro em uma garagem. E, de fato, foi recebido com muita resistência por parte da comunidade paleontológica.

No século XIX, quando Fuhlrott descobriu o homem de Neandertal, encontrou uma resistência semelhante. O grande Rudolf Virchow, pai da teoria celular, que constituiu a primeira grande unificação da biologia (“Omnis cellula e cellula”, cada célula tem origem em outra), enfrentou o grande golpe de sua carreira ao sentenciar que os restos mortais estudados por Fuhlrott, na verdade, pertenciam a um “idiota com artrose”.

Como a evolução não era aceita na época, o simples fato de que havia existido uma espécie humana primitiva lhe parecia absurdo. Como aconteceu com muitos estudiosos antes e depois, Virchow mostrou-se refratário às evidências.

Quase um século e meio depois da publicação de ‘A Descendência do Homem’, as teses de Darwin foram superadas pela genômica e pelas escavações

A história se repetiu com o hobbit, em uma espécie de tributo paradoxal à derrocada de Virchow. Um grupo de paleontólogos defendeu desde o início que se tratava de uma mulher com microcefalia. Pesquisas recentes, no entanto, confirmam que o crânio de Flores é uma versão em miniatura do cérebro típico do gênero Homo, ao qual pertencem o Homo erectus e nossa espécie. Os cientistas não sabem se o hobbit já era pequeno quando chegou à ilha ou se miniaturizou depois de chegar lá, como de fato aconteceu com um elefante anão que também viveu na região. Os dados mais recentes apontam para a segunda hipótese, embora a questão permaneça em aberto enquanto mais crâneos não forem encontrados.

Depois do “idiota com artrose” de Virchow e da mulher microcefálica de Flores, vale lembrar uma citação de Darwin:

“A ignorância gera mais frequentemente confiança do que o conhecimento: são os que sabem pouco, e não aqueles que sabem muito, que afirmam de uma forma tão categórica que este ou aquele problema nunca será resolvido pela ciência”. Darwin escreveu a frase em A Descendência do Homem, preparando-se para o que, certamente, teria de enfrentar. Mas a citação é aplicável às resistências de cientistas encontradas pelo neandertal e pelo hobbit.

O neandertal e o hobbit compartilham outra qualidade: não são nossos ancestrais, e sim ramificações independentes da nossa. São a primeira indicação — e de forma alguma a última, como veremos — de que a evolução humana não tem a forma de uma cadeia linear, com um elo após o outro subindo a escada para o céu. Sua forma é mais parecida com a de um arbusto, com uma variedade de ramos aqui e ali, com diversificações locais, largadas falsas, becos sem saída e extinções frequentes. Tão frequentes que, de fato, só resta nossa espécie.

O truque para aceitar essa teoria sem escândalo é perceber que essa forma de arbusto não é nenhuma peculiaridade da evolução humana. Pelo contrário, é a forma geral dos processos evolutivos. Essa é uma ideia à qual dedicou metade de sua vida o evolucionista nova-iorquino Stephen Jay Gould, falecido em 2002. Darwin insistiu no caráter gradual da evolução, inspirado por seu mentor, Charles Lyell, cuja geologia era estritamente gradual para escapar dos dilúvios universais da religião e do catastrofismo da cultura popular. Mas a história geológica do planeta é apenas gradual nos períodos de bonança, e aparece pontuada por mudanças bruscas do ambiente, movimentos tectônicos, orgias vulcânicas, secas desastrosas e até impactos de asteroides gigantescos. A vida tenta se adaptar como pode: por isso ainda estamos aqui depois de 4 bilhões de anos.

Os europeus atuais possuem ramificações do DNA neandertal, e os asiáticos têm traços do DNA denisovano

Um segundo aspecto essencial é que nem toda evolução humana ocorreu na África, ao contrário do que pensávamos até recentemente. O homem de Atapuerca ou o Homo antecessor, descoberto no imenso sítio paleontológico de Burgos, na Espanha, é certamente um bom exemplo. Arsuaga e seus colegas o chamavam pré-neandertal, porque tem todos os sinais de estar em evolução em direção aos traços típicos dos neandertais, e os precede no tempo geológico em algumas centenas de milhares de anos. Portanto, é provável que os neandertais evoluíram na Europa, e não deixaram a África já formados.

De fato, a genômica fornece provas irrefutáveis de certas formas de evolução fora da África. A leitura do DNA antigo avançou a tal ponto que agora é capaz de descobrir uma nova espécie a partir de uma falange de um dedo. Assim descobriu-se há alguns anos os denisovanos, uma espécie contemporânea aos neandertais, mas diferente deles, e que habitava mais a Ásia do que a Europa. E, de fato, os europeus atuais possuem ramificações de DNA neandertal; e os asiáticos e habitantes das Ilhas do Pacífico possuem traços do DNA denisovano.

Quando nossos antepassados sapiens deixaram a África, há mais de 50.000 anos, essas duas espécies antigas já estavam há centenas de milhares de anos se adaptando às circunstâncias ambientais da Eurásia. E os recém-chegados se beneficiaram desses genes adaptados por uma conhecida via de evolução rápida. Conhecida por sexo.

Finalmente, uma história mais complicada do que o esperado, mas também mais interessante, não acham?

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