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PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Os dragões de Komodo

Restam uns 3.000, e parece que são contemporâneos de pleistocenos e dinossauros

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

A Indonésia, pelo visto, se compõe de 17.000 ilhas, das quais 4.000 desaparecem quando a maré sobe e reaparecem quando baixa. Um punhado delas, no mar de Flores, faz parte do Parque Nacional de Komodo. É um local celebérrimo pela beleza de sua paisagem, a riqueza de suas águas com recifes de coral e miríades de peixinhos que atraem mergulhadores de meio mundo, mas, sobretudo, por seus dragões. Restam uns 3.000, e parece que são contemporâneos de pleistocenos e dinossauros, umas velharias que, pelas condições climáticas destas paragens, onde, diga-se de passagem, foram encontrados também os ossos do hominídeo mais antigo, sobreviveram a todos os desastres geológicos que acabaram com as espécies pré-históricas.

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Enquanto navegava para a ilha de Rinca para conhecê-los, ia me lembrando de uma proposta que o The New York Times me fez há muitos anos. Tinha a ver também com um fenômeno da natureza. Um cientista respeitável havia detectado nas selvas do Brasil um animal que fazia séculos rondava as lendas das tribos amazônicas e que até então se acreditava ser puramente mítico. Mas aquele homem da ciência havia comprovado que ele existia, e suas provas tinham convencido o jornal nova-iorquino, que estava preparando uma expedição para ir procurá-lo. Propunha-me que fosse o cronista da aventura. Com dor na minha alma foi impossível aceitar essa emocionante reportagem, por obrigações de trabalho que se cruzavam com a data da viagem. Depois soube que os expedicionários não encontraram o monstro, o qual, imagino, continua até hoje no reino da mitologia, longínquo e salvo.

Dos dragões-de-komodo – cheguei a ver três – direi antes de tudo que são horripilantes, umas lagartixas gigantescas (sem a agilidade e a graça das pequenas), de uns três metros os machos e as fêmeas com dois e meio, armados de uma pele escamosa parecida com a da jiboia e a do crocodilo, uma língua amarelenta e protuberante de uns quarenta centímetros e uns olhos lentos, remelentos e glaciais que permitem entender completamente e com escalafrios a expressão “olhar mefistotélico”. Mas, estou certo, nem sequer os olhos do doutor Mefistófeles eram tão inquietantes como os desses assombros milenares.

O primeiro alerta dos guias é que não convém se deixar morder por eles, pois têm uma boca enquistada por toda classe de bactérias venenosas. Isto lhes permite se alimentar dos macaquinhos, javalis, cavalos, ratos e pássaros com os quais compartilham o território. São camaleões insuperáveis. Pétreos, permanecem horas e dias mimetizando as árvores, as rochas e a lama, até que alguma presa se ponha ao seu alcance. Tão logo a mordem, ela fica paralisada pelas infecções. Então a engolem inteira, com ossos e tudo, salvo os do crânio, que não conseguem digerir, de modo que a ilha de Rinca está repleta dos restos indigestos das comilanças dos dragões. São também canibais, pois se devoram quando a fome aperta, e até mesmo as fêmeas são capazes de engolir as crias que acabam de parir. Que costumes!

Outra de suas graças é que os machos não têm um, mas dois pênis. Foi o que os guias me garantiram – não me aproximei tanto deles para comprovar

Outra de suas graças é que os machos não têm um, mas dois pênis. Foi o que os guias me garantiram – não me aproximei tanto deles para comprovar. Suponho que isto lhes permita bater o recorde que no reino animal estabeleceram o sapo e a sapa, cujos agarramentos sexuais, como é sabido, podem durar quarenta dias e quarenta noites, sem que consigam ser separados nem por descargas elétricas nem pelas mutilações que os cientistas, esses bárbaros, lhes infligem para medir sua capacidade de resistência durante o prazer.

Estou certo de que os dragões-de-komodo não serão minha lembrança mais imperecível dessas ilhas, e que provavelmente os esquecerei bem depressa. Só de imaginá-los devorando os ratos vivos que infectaram com seus bacilos me dá náuseas. O que, porém, nunca sairá da minha memória desses dias serão as águas-vivas (ou medusas) do mar de Flores, com as quais sofri, mas que nunca cheguei a ver.

Estava nadando em um mar limpo, transparente, tranquilo e tépido, quando de repente me senti alvejado nos braços e estômago por dezenas, talvez centenas, de pequenos dardos ou agulhas invisíveis que, durante alguns instantes, me deixaram paralisado, flutuando. Olhei e não vi nada nas águas imaculadas ao redor e, no fundo, só as construções rosadas e fantásticas dos recifes. Depois me explicaram que meu agressor podia ser um plâncton ou um cardume de águas-vivas infinitesimais, que também são abundantes neste mar e às quais minha presença teria alarmado, desencadeando a descarga de seus microscópicos tentáculos. A forte dor desapareceu em pouco tempo e, vendo que não havia ficado na minha pele vestígio algum da agressão, respirei tranquilo.

Estava nadando em um mar limpo, transparente, tranquilo e tépido, quando de repente me senti alvejado nos braços e estômago por dezenas, talvez centenas, de pequenos dardos

Não durou muito. As consequências daquela picada se manifestaram com as sombras da noite: manchas arroxeadas causaram de repente erupções em toda a pele afetada, acompanhadas de uma comichão feroz, sem misericórdia, que foi aumentando em segundos até se tornar inelutável. Nada a detinha, apesar de descarregar sobre ela todos os cremes para o ardor das picadas que, prevenido por uma longa credencial de vítima dos mosquitos em minhas viagens à selva, carrego sempre em minha mala. Mais parecia que, em lugar de atenuá-la, a excitava e enfurecia. Nunca me cocei tanto, nunca dormi tão pouco, nunca passei uma noite mais exasperante em minha longa existência.

Na manhã seguinte, no moderno hospital construído pelos japoneses na fervilhante cidade de Labuan Bajo, uma dermatologista com quem me entendia em uma linguagem de gestos e caretas me deu a entender que a picada daquele exército de águas-vivas infinitesimais não teria efeito algum sobre a minha saúde futura. Deu trabalho explicar-lhe que meu problema não era o porvir, mas o presente, que essa comichão me enlouquecia, e que a tirasse de mim, mesmo que fosse amputando-me os braços. Fiz uma demonstração prática, coçando-me diante dela como um macaco. Plácida, imperturbável, ela assentia e sorria.

O pesadelo durou mais três dias e três noites. Os remédios da doutora me deixaram sonolento e tonto; o ardor ia cedendo com lentidão exasperante, enquanto minha cabeça virava e revirava sem cessar uma imagem do diário de viagem de Flaubert ao Egito, que li há séculos: seu súbito encontro, no beco de uma aldeia, com o leproso, e a terrível descrição de suas chagas purulentas.

Agora já estou bem e voltei a reler Popper e nadar no mar, embora com justificável apreensão. Curiosamente, minha cólera retrospectiva por aquela fuzilaria submarina não se volta contra as diminutas águas-vivas, às quais minha súbita invasão de seu líquido espaço deve ter produzido um susto maiúsculo, contra o qual se defenderam como puderam, mas contra os dragões. Transferência freudiana ou o que for, a essas assombrosas criaturas, e somente a elas, responsabilizo por aquele sabá cutâneo com que me receberam as águas deste ardente paraíso.

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