Algumas considerações sobre o ‘Brexit’
O Brasil já estava um tanto à margem dos processos de inserção, atuação e renovação no plano internacional. Com a crise européia pós-Brexit, esta situação provavelmente se agravará
O chamado Brexit, ou seja, a saída do Reino Unido da União Européia, tem ocupado a cena política das últimas semanas. Os jornais estão cheios de artigos, os comentaristas analisam a questão sob diferentes perspectivas e, no final, pouco se pode entender sobre: (1) quem falhou na campanha do plebiscito e, (2) o que vai acontecer daqui para a frente.
Não pretendo, de minha parte, me aventurar a dar respostas a essas duas questões. O fato está aí e é isso que importa. Minha intenção, neste breve artigo, é tentar colocar o fato sob uma certa perspectiva histórica.
O Brexit, a meu ver, constitui um fenômeno natural, à luz do comportamento secular das Ilhas Britânicas em relação ao Continente. O que não foi natural, na realidade, foi a entrada do Reino Unido no processo europeu. Diz um ditado francês “Chassez le naturel et il revient au galop”- ou seja, afaste de si o natural e ele volta a galope. Foi justamente o que aconteceu.
Distanciado da Europa Continental, o que hoje é o Reino Unido jamais deixou de se orientar por políticas unilaterais e autoritárias. Sempre com o fito de criar divisões entre os grandes atores da Europa: França, Alemanha, Áustria, Rússia, Itália, Turquia, Espanha e outros mais. Seu objetivo foi invariavelmente o de evitar a formação de uma grande unidade predominante no Continente. Para ficarmos entre os séculos XIX e XX, sem, portanto, mencionar a derrota infligida à Grande Armada Espanhola em 1588, a Inglaterra derrotou a França Grande de Napoleão, a Alemanha Imperial, a Alemanha Nazista e a Rússia Comunista. Esta última por meio de hostilidades e ações encobertas durante a Guerra Fria.
Robert Kaplan, em seu The Revenge of Geography(A vingança da Geografia) acentua as expressões perenes das diferenças geográficas, ou seja, os padrões distintos de desenvolvimento na Europa Ocidental, nos Balcãs e no Mediterrâneo. Antevê que, com a intensificação dos movimentos de populações, a História européia será cada vez mais inter-relacionada, ao sul, com a África, e com a Ásia, a leste. Sem perder sua variedade intrínseca, no dizer muito apropriado de Kaplan, a Europa ficará mais e mais às voltas com o “narcisismo das pequenas diferenças”. Foram justamente essas “pequenas diferenças narcisistas” que, ao longo do tempo, a Inglaterra soube muito bem explorar para seu benefício.
Os tempos mudaram mas as compulsões das grandea potências européias não mudaram. Apenas variaram de intensidade. Quando se formou o Mercado Comum Europeu, em 1957 com os Tratados de Roma, a Inglaterra não manifestou desejo de entrar na Europa dos Seis. Quando mais tarde quis fazê-lo, em 1963 e 1967, a França de De Gaulle o impediu. A preocupação dominante na França gaulista continuava a ser a contenção da Alemanha que, por sua vez, desejava que a Inglaterra entrasse para evitar um protagonismo excessivo francês. Só veio a entrar em 1973. E desde então recusou-se a implementar as políticas mais fortes de integração: o Euro e o Tratado de Schengen (livre circulação de pessoas). Preservou ademais regras muito especiais para sua maior fonte de riqueza há algumas décadas: a praça financeira de Londres.
O Brexit, a meu ver, constitui um fenômeno natural, à luz do comportamento secular das Ilhas Britânicas em relação ao continente europeu
Não conseguiu porém impor os limites que desejava em matéria de livre circulação no espaço europeu. E foi uma conjugação de forças da Inglaterra de “classe mais baixa”, mais sujeita, portanto, à concorrência dos imigrantes, e mais “nacionalista”, junto com uma certa indiferença das classes mais altas, que acabou determinando o Brexit.
Não há como minimizar também a aversão britânica ao modelo do tipo socialista que vem há décadas caracterizando a União Européia por oposição ao modelo liberal original. Implantado pelos franceses, de François Mitterand a Jacques Delors, aquele modelo, tal como bem definido em recente artigo aparecido na imprensa européia, pretende consolidar uma coalizão de interesses estatistas entre grupos nacionalistas, socialistas e até conservadores. A União Européia vista como uma fortaleza: protecionista para quem está fora e internacionalista para quem está dentro. Este não é certamente um modelo que possa ser aceito com naturalidade pela Inglaterra, que é o segundo maior contribuinte da União Européia.
Há, porém, outras circunstâncias que que determinaram o Brexit: (1) a oposição entre a visão “única” dos governos socialistas que segue o “modelo” francês assistencialista e a visão liberal clássica dos governos democrata-cristãos (Holanda, Alemanha, Reino Unido); (2) A crescente influência de uma visão “anti-globalização”, tal como exemplificada mais recentemente pelo fenômeno Donald Trump nos EUA. E há quem veja nos tempos atuais “ecos” distantes dos anos 30 da “Grande Depressão”. A recessão atual, sob essa perspectiva, pode estar prenunciando algo tão catastrófico quanto a daquela década.
A saída da Inglaterra tomará ainda algum tempo. Os ingleses vão arrastar os pés o quanto puderem para ver se conseguem alguma concessão adicional de Bruxelas que justifique um novo referendum capaz de cancelar o Brexit. Não me parece realista, mas não é impossível. Esse, alíás, é o modo tradicional de operar dos anglo-saxões: pressionar até o fim ou, no caso presente, até depois do fim…
E o Brasil em tudo isso?
Com a saída da Inglaterra perde o Brasil um certo contra-peso às políticas agrícolas ultra-protecionistas européias, que afetam negativamente nossas exportações do agro-negócio. O Acordo Mercosul-União Européia fica ainda mais difícil de ser concluído, o que contribuiria para aumentar ainda mais nosso isolamento em matéria de comércio internacional.
O Brasil já estava um tanto à margem dos processos de inserção, atuação e renovação no plano internacional. Com a crise européia post-Brexit, esta situação provavelmente se agravará. Para contornar este imenso problema, temos de conduzir urgentemente relações internacionais mais intensas e inovadoras. Antes de mais nada, temos que começar a superar a gravíssima crise política em que estamos atolados - como numa tragédia grega - ainda sem capacidade de antever saídas.
E ficam as perguntas :(1) será que a situação terá de piorar ainda mais antes de melhorar? e (2) que fazer do Mercosul?
Do jeito que vão as coisas, não é impossível que cheguemos a ter uma "Argsalida", atraído que está nosso maior parceiro regional pela miragem do Pacífico e/ou por um acordo unilateral com a Inglaterra.
Luis Felipe de Seixas Corrêa é diplomata, chefiou a missão do Brasil na ONU e na OMC. Foi por duas vezes secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (1992 e 1999-2001).
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