Nove milhões, três freiras e o fim de uma época
Ex-secretário de Estado de Obras Públicas da Argentina escondia grande quantidade de dinheiro
O episódio parece tirado de um livro: nos subúrbios obscuros de Buenos Aires, em uma noite de inverno, um senhor baixinho sai de um carro grande com várias bolsas nas mãos, tropeça, toca a campainha de um convento; espera, nervoso, mas não abrem a porta. No mosteiro das Irmãs Orantes e Penitentes de Nossa Senhora de Fátima vivem três freiras muito idosas, com problemas para dormir: costumam tomar comprimidos. O senhor, desesperado, joga as bolsas por cima do muro e pula; um vizinho vê e, preocupado com as freiras, chama a polícia. Tocam as sirenes, chegam dois carros de polícia, o senhor sai, se identifica: é José López, secretário de Estado de Obras Públicas durante os Governos de Néstor e Cristina Kirchner. A polícia pergunta o que tem naquelas bolsas; nada, alguns papéis. Quando abrem, encontram maços de dólares. O senhor ex-secretário lhes oferece dinheiro para que esqueçam e vão embora: é o procedimento habitual. Por alguma razão, não aceitaram.
Nas bolsas havia 90 quilos de notas: nove milhões de dólares, euros, iuanes, relógios de luxo, uma metralhadora; agora, José López está preso e sua advogada — uma cantora de cumbia que já posou com pouca roupa para uma revista — quer fazer com que ele passe por perturbado. Quem está perturbado com o fato é o país: a farsa trágica do convento de Fátima parece ser o desastre final do kirchnerismo. Há quem comemore: o atual Governo e seus defensores, é claro. Mas também a esquerda, as forças que buscam uma mudança.
O kirchnerismo foi a pior coisa que aconteceu com a esquerda argentina desde a ditadura militar. Não só acabou convencendo milhões a votar na direita e no centro — nas últimas eleições 90 por cento dos argentinos votaram assim — mas tornou suspeito qualquer discurso da justiça social, redistribuição da riqueza e outras aspirações: os usou como pura retórica, enquanto mantinha as injustiças e a pobreza, e agora soam como piadas velhas. Mas, acima de tudo, arrastou junto consigo milhares de jovens bem-intencionados, desviou as energias de mudança de uma geração e as colocou a serviço de suas falsificações.
A farsa de Fátima deixou, por fim, completamente exposta a grande farsa. Poucos imaginam que López, que fazia parte do círculo íntimo dos Kirchner desde 1994, pode ter agido sem a aprovação deles. Encurralada, Cristina Kirchner está agora determinada a provar que não é uma ladra, mas sim uma tola: que seus funcionários mais próximos estavam roubando sem parar e metade do país sabia, mas ela não. Seja uma coisa ou outra, seu tempo acabou.
Isso é o que já se vê: seus seguidores mais notáveis falam de desalento, indignação, vergonha. Passaram 12 anos sem querer acreditar que seus chefes não faziam o que diziam e faziam, principalmente, o que não poderiam dizer. Protegeram-se, para isso, atrás do argumento de que as denúncias eram invenções infundadas da maldita imprensa; agora, a imagem do secretário pulando o muro mata qualquer desculpa.
O formigueiro depois de um chute: o resultado da farsa de Fátima será, a médio prazo, uma grande quantidade de energia social em busca de novos caminhos, muitos jovens que quiseram acreditar agora remoendo seu desânimo e pensando se poderão voltar a acreditar e, em caso afirmativo, no que. Onde se erguia um muro agora há um espaço aberto, as posições começam a se redefinir. Em alguns anos saberemos como será o novo capítulo que os 90 quilos de notas do senhor baixinho está abrindo na política argentina.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.