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A ascensão da extrema-direita: os austríacos em primeiro lugar

Colapso do bipartidarismo impulsiona a ultradireita, que apela ao patriotismo e à tradição O EL PAÍS inicia uma série para analisar os fatores nutrem seu crescente apoio

Os chamados partidos populistas de ultradireita deixaram de ser uma minoria radical na Europa, e a etiqueta de extrema-direita ficou pequena para eles. Capitalizam a eurorraiva, a ansiedade perante uma realidade mutável e imprevisível e a rejeição ao estrangeiro e a tudo o que vier de fora. A crise de refugiados, os ataques terroristas em Paris e Bruxelas e a crise da Grécia provocaram mudanças profundas nas atitudes dos europeus. Esses partidos triunfam em quase todos os países da União Europeia – na Espanha e Portugal não, ou ainda não. O EL PAÍS percorreu três deles para investigar o que leva milhões de europeus a votarem nesses partidos. O que faz com que um europeu médio queira ver políticos como Marine Le Pen (França) ou Geert Wilders (Holanda) à frente de seu Governo?

O líder do FPÖ, Heinz-Christian Strache, com um traje típico, em 1º. de maio.
O líder do FPÖ, Heinz-Christian Strache, com um traje típico, em 1º. de maio.DOMINIC EBENBICHLER (REUTERS)

No café Schwan, as canecas de cerveja são servidas a todo vapor, e isso que não são nem oito e meia da manhã. A esta hora, Franz Wolfsgruber aparece para o encontro trajando Lederhosen – as típicas calças curtas de couro, com suspensórios –, meias de lã verde até os joelhos e paletó austríaco. Traje completo. E não é qualquer um. Suas calças são uma réplica exata da peça que o kaiser Ferdinando I vestiu, e para obter uma dessas é preciso esperar três anos e desembolsar 3.000 euros (11.500 reais). Estamos em Gmunde, uma cidade de conto de fadas na Alta Áustria, com direito a lago e montanha, mas transformada em campo de batalha do ultraconservador FPÖ (Partido da Liberdade da Áustria). Aqui, como em outras localidades deste Estado industrial, o partido que causou comoção internacional no mês passado ao roçar a vitória na eleição presidencial austríaca aspira a seduzir o eleitorado conservador. Apelar ao patriotismo e à identidade nacional contra tudo o que vier de fora é uma das estratégias da ultradireita europeia, cujos partidos avançam com força e, a exemplo do FPÖ, se apresentam como guardiões da tradição e do Estado-nação.

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Wolfsgruber é o presidente da Trachtenvereine (associação de cultura tradicional) mais antiga da região. Sentado junto a uma das mesas de madeira do Schwan, junto com a esposa, folheia um calendário cheio de fotos que ilustram as tradições centenárias que seus 200 membros recriam todos os meses. Wolfsgruber não quer saber de política, porque diz que a sua atividade é puramente cultural, mas ao mesmo tempo se queixa de que o FPÖ busca se apropriar das associações (Vereine) para fins políticos. “Vestem o paletó austríaco e acham que são donos da tradição.”

A uma hora de trem do café Schwan, Manfred Haimbuchner entra no seu gabinete parlamentar com uma expressão triunfal no rosto. O vice-governador da Alta Áustria acaba de conseguir que os refugiados recebam menos ajuda que os austríacos que estejam igualmente necessitados. Esse político amável e sorridente demonstrou que “os austríacos em primeiro lugar”, lema do seu partido de ultradireita, começa a ser uma realidade em seu Estado, onde o FPÖ governa em coalizão há cerca de seis meses.

“Aqui muita gente trabalha durante anos para ganhar uma pensão de 1.000 euros (3.840 reais), aí chega um refugiado que nunca trabalhou, e o Estado lhe dá a mesma coisa. Não é justo. Eles veem como vivemos, nossas casas e nossos carros, e querem viver como nós, mas não veem o trabalho que há por trás”. O que Haimbuchner diz no seu gabinete em Linz, a capital estadual, é repetido por seus compatriotas nas ruas. Mais de 90.000 pessoas solicitaram asilo no ano passado na Áustria, que é também um dos principais países de trânsito de refugiados rumo ao norte da Europa. Estima-se que 14,6% da população da Áustria sejam estrangeiros, metade deles de outros países da União Europeia.

O poderio da ultradireita, que já chegou inclusive a governar a Áustria, não é novidade neste país, mas o desembarque de pessoas que fogem da guerra alimentou a xenofobia e a rejeição a uma União Europeia que muitos austríacos consideram incapaz de dar solução aos seus problemas, o que consequentemente estimulou o crescimento do FPÖ. Haimbuchner acredita que o correto seja proteger primeiro os austríacos, e gaba-se de que o seu partido é o único que defende o patriotismo. “É uma das razões pelas quais nos elegem.”

Seu Governo regional é um laboratório das políticas do FPÖ. Empenha-se atualmente, por exemplo, em obrigar todas as crianças a falarem apenas alemão na escola, inclusive no recreio. Planeja também reforçar as Tratchenvereine (associações culturais) como a de Gmunden, encarregadas de manter as tradições vivas. “Queremos oferecer muito financiamento às Vereine. É importante que não percamos nossa identidade.”

Em Gmunden, o FPÖ é o segundo partido mais votado. Aqui se repete a enxurrada de queixas ouvidas em outros países europeus: que ninguém elege os eurocratas que decidem pelo povo, que a globalização beneficia só os ricos, e sobretudo que não querem que os refugiados cheguem para sugar o seu generoso Estado de bem-estar. “Os austríacos têm a sensação de que o Governo é incapaz de tomar decisões sobre os refugiados ou sobre o euro, que está de mãos atadas”, pensa Eva Zeglovits, cientista política do instituto de pesquisas sociais IFES.

Uma taxista aposentada que agora vota no FPÖ depois de toda uma vida apoiando os sociais-democratas explica dessa forma: “Nunca pensei que iria votar na direita, mas a UE me decepcionou. Há muita regulação, e nós não gostamos que nos digam o que temos que fazer”, diz. “Deixei de votar [nos sociais-democratas] porque são fracos, não sabem defender o seu povo em Bruxelas”. Não quer dar seu nome para não ser associada ao FPÖ. É uma mulher muito bem informada e se declara “patriota”. “Queremos conservar nossa cultura e nossa identidade”, acrescenta. Seu argumento se repete com crescente intensidade em toda a Europa, como se um ladrão de identidades zanzasse pelo continente, à espreita.

Bairro operário

Se a conservadora Gmunden ainda é um território por conquistar para o FPÖ, Auwiesen, bairro operário na zona sul de Linz, é dessas regiões da Áustria que sempre foram vermelhas, até que, numa tripla pirueta, começou de repente a votar na extrema direita. Aqui não há lago nem montanha. O que há é um shopping caindo aos pedaços, crianças com sobrepeso, peles de todas as cores, cachorros de rinha e um quiosque de kebab onde um homem bêbado, com o pescoço tatuado, entra aos gritos. Fora, outros bebem cerveja e riem dele. Auwiesen é uma miscelânea humana na qual vão parar todos aqueles que não podem se dar ao luxo de viver em bairros melhores. “O FPÖ foi capaz de capitalizar o medo dos derrotados pela globalização”, observa Anton Pelinka, especialista em nacionalismos da Universidade Central Europeia em Budapeste.

Um deles é Joseph Hainbucher, garçom recém-aposentado, morador de Auwiesen. “Os outros [os dois grandes partidos] estão há 20 anos falando e falando, sem fazer nada. Nós, austríacos, nos sentimos estrangeiros em nossa própria terra. As crianças turcas no colégio não são obrigadas a catar os papéis do chão, os austríacos sim. Já não podem nem cantar nossas canções tradicionais em classe”, diz. No coquetel de argumentos agitado pelos eurofuriosos cabem verdades e mentiras em partes iguais. Isso pouco importa, porque aqui domina o irracional, um certo sentimento de abandono e de vingança contra os de cima.

“A linguagem está se tornando cruel. Apresentam os imigrantes como culpados de todos os problemas. Oferecem soluções fáceis para problemas muito complexos”, diz Walter Haberl, secretário da Federação de Sindicatos Austríacos na região. E detalha que, apesar de o desemprego estar apenas em torno de 6%, essa é a maior cifra registrada na Áustria desde os anos 1950, o que explica parte do mal-estar. Franz Schellhorn, analista da Agenda Áustria, considera que o apoio ao FPÖ se deve sobretudo à exaustão do bipartidarismo e das grandes coalizões, incapazes de oferecer resultados. “Querem romper o cartel do poder, estão fartos de que os dois grandes partidos sempre ajudem os seus”, diz. Os dados em seu poder indicam que o perfil do eleitor do FPÖ é homem, de meia idade, pouca formação, temeroso de ser substituído por uma máquina ou um imigrante que ganhe menos pelo mesmo trabalho.

O Movimento Identitário é o rosto menos amável do regresso às raízes na Áustria e em outros países da UE. Nasceu em 2012, em Viena, e é uma réplica da organização francesa surgida anos antes. Na semana passada, reuniu cerca de mil pessoas em Viena contra “a grande substituição demográfica” da Europa e “o multiculturalismo”. Ou seja, contra os imigrantes, para os quais propõem a “remigração” aos seus países de origem. “Não basta votar, é preciso estar na rua fazendo ativismo”, diz, num bar de Viena, Alexander Markovics, fundador do movimento, que agora está ameaçado de ser proscrito pelo Governo. Seus integrantes aspiram a replicar o Maio de 68, mas para “despertar a maioria silenciosa patriótica e obter uma hegemonia da direita”. Markovics afirma ter ótimas relações com o FPÖ.

Entardece em Gmunden, e o Schwan serve escalope vienense em todas as suas modalidades. Sonoras gargalhadas masculinas emanam das mesas. São as Stammtisch, as tradicionais reuniões semanais em que amigos austríacos se reúnem, sempre no mesmo dia e na mesma mesa. Às 21h, o café vai se esvaziando, e os clientes pagam um por um, separadamente, como manda a tradição.

POSSO CORRER DE SHORT?

A vice-prefeita de Gmunden, Beate Enzmann, é uma política sorridente do ultraconservador FPÖ. Faz um dia esplêndido e, a bordo de um barco de madeira, no meio do lago onde, segundo contam, já emergiu uma sereia, Enzmann afirma que em Gmunden quase não há problemas, que a cidade é um exemplo de como deveriam ser as coisas no resto do país, mas que recentemente surgiu uma preocupação entre os moradores.

Ocorre que há um velho hotel, no subúrbio da cidade, cujos proprietários receberão dinheiro do Governo para acolher 150 solicitantes de asilo. É um edifício de aspecto alpino, construído com madeira escura. Durante um tempo foi grego – ainda conserva um letreiro com o nome Poseidon –, e está cercado por um bosque frondoso. Enzmann acha que os refugiados “não gostam disso, é melhor que vivam na sua região, em lugares mais parecidos com o seu país”.

A notícia da futura chegada dos refugiados alterou a rotina da comunidade e, como a vice-prefeita é também secretária de Interior, os moradores lhe transmitem suas preocupações. “Alguns temem que os refugiados irão atear fogo ao bosque. Como o hotel é de madeira, têm medo de que façam sua comida com fogareiros e queimem tudo”, diz Enzmann. “Além disso, há mulheres que usam o bosque para fazer ginástica e me perguntam se, quando os refugiados chegarem, poderão sair para correr de short. Há medo.”

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