Rap e livros: o que bastou para jovens angolanos serem presos
Tribunal alega que eles estavam conspirando. Silêncio da diplomacia brasileira é criticado
Cinco anos e seis meses de prisão. É esse o tempo que o rapper Luaty Beirão terá que cumprir, segundo a sentença condenatória proferida em 28 de março pelo Tribunal Provincial de Luanda. Luaty, assim como outros 16 jovens angolanos, foi condenado por “atos preparatórios para rebelião” e associação criminosa. Os jovens participavam aos sábados de um grupo de estudos de uma versão angolana do livro Da ditadura à democracia, do pacifista americano Gene Sharp. Catorze deles foram presos em junho do ano passado, em “flagrante delito” enquanto discutiam o livro. Desde então, Luaty passou 85 dias numa cela solitária, com direito a apenas uma hora de sol por dia, e depois seguiu preso em cela comum. Em dezembro o grupo foi transferido para a prisão domiciliar.
O julgamento durou 4 meses, durante os quais o Ministério Público procurou fundamentar a acusação de conspiração para derrubar o presidente José Eduardo dos Santos, que está no poder há 36 anos. Uma das principais peças apresentadas pela acusação foi um vídeo filmado durante os encontros por um jovem infiltrado pelo serviço secreto, mostrando os debates sobre táticas de protestos não violentos contra o governo.
Além disso, a acusação apresentou uma lista que circulou pelo Facebook contendo nomes de pessoas que deveriam ocupar cargos em um potencial governo pós-José Eduardo dos Santos. A brincadeira das redes sociais foi tomada pelo juiz como prova de que havia planos concretos para derrubar o presidente, embora constassem nomes pouco prováveis, como um fanático líder religioso que pregava fim do mundo. “Os arguidos estavam a preparar atos de rebelião porque os mesmos não pretendiam apenas ler um livro. Os arguidos queriam aprender como destituir o poder”, afirmou a representante do Ministério Público Isabel Fançony Nicolau.
Direto para a prisão
A estudante de filosofia Laurinda Gouveia, entrevistada pela Agência Pública em setembro do ano passado, foi condenada a 4 anos e 6 meses de prisão. A mesma sentença foi dada aos jovens Nuno Dala, Sedrick de Carvalho, Nito Alves, Inocêncio de Brito, Laurinda Gouveia, Fernando António Tomás “Nicola”, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Osvaldo Caholo, Arante Kivuvu, Albano Evaristo “Bingo-Bingo”, Nelson Dibango, “Hitler” Jessy Chivonde e José Gomes.
Além de Luaty Beirão, o professor Domingos da Cruz também recebeu pena maior – 8 anos de prisão – por ser considerado “líder” do grupo. Domingos é autor da adaptação do livro de Gene Sharp para o contexto angolano. Dois outros acusados receberam pena de 2 anos e três meses: Benedito Jeremias Dali “Dito” e Rosa Kusse Conde. O militar Osvaldo Caholo aguarda o processo no Tribunal Militar.
Todos participavam da pequena, mas vibrante cena Rap de Luanda, que reúne jovens músicos críticos ao regime. Segundo maior exportador de petróleo da África, Angola tem cerca de 36% da população vivendo abaixo da linha da pobreza, e possui a pior taxa de mortalidade infantil do mundo, enquanto a filha do presidente é a mulher mais rica do continente.
Os condenados foram levados para a prisão logo após proferida a sentença, na manhã desta segunda-feira. Mas não se sabe o local exato, segundo Pedro Beirão, irmão mais novo de Luaty. “Ele já está efetivamente preso, mas não sabemos onde. Os advogados não sabem, vamos ver se amanhã sabem.” Pedro, que compareceu nesta manhã ao tribunal, diz que não teve contato com o irmão, que não estava na sala durante a sentença. “Não consegui ter acesso a ele, então não podemos saber muito bem a reação dele. Eu estou um bocado preocupado para saber onde ele vai estar e se vamos ter acesso a ele.”
Até ontem Luaty estava calmo e “preparado para o pior”, já que a condenação não foi uma surpresa, conta o irmão. “Obviamente achamos uma grande injustiça a decisão que foi tomada, mas não nos surpreende muito, porque o Tribunal em si já tinha dado alguns indícios que a decisão ia no caminho da condenação. Só tínhamos dúvida em relação aos 5 anos. Nos parece uma pena extremamente pesada para alguém que não fez nada.”
A defesa dos jovens entrou com recurso no Tribunal Supremo pedindo a revisão da sentença.
Ana Cernov, coordenadora do programa Sul-Sul da organização Conectas, que defende direitos humanos, diz que a decisão viola direitos tanto no âmbito nacional como internacional. “Esses jovens estão sendo condenados por lerem um livro. Em qualquer país democrático eles poderiam se reunir em um grupo de estudos e inclusive criticar abertamente o governo, e não poderiam ser condenados por esses crimes”, diz. Ela lembra que a decisão acontece na mesma época em que o governo angolano tenta projetar sua imagem internacionalmente. “Neste momento Angola ocupa a presidência do Conselho de Segurança da ONU. Mas se o governo quer ter esse papel internacional, tem que garantir a liberdade de expressão, de reunião e de associação em Angola.”
Ana Cernov critica ainda o silêncio da diplomacia brasileira sobre o assunto – o que considera “uma irresponsabilidade” uma vez que Brasil é um parceiro econômico estratégico de Angola. “Acreditamos que o Brasil teria forças suficientes para pressionar o governo angolano para garantir esses direitos fundamentais de expressão.” O Itamaraty afirmou repetidas vezes que não iria se manifestar sobre os ativistas.
Ativista angolano pede asilo no Brasil
Desde novembro do ano passado, um dos mais conhecidos ativistas ligados aos 17 jovens está no Brasil, onde pede asilo político. O angolano Raul Mandela chegou a ser entrevistado pela Pública em Luanda, antes de embarcar para São Paulo.
Sua partida foi conturbada. “Eu saí no dia 20 de novembro do ano passado. Mas tive um problema no aeroporto. O meu passaporte foi retido e me disseram que eu não podia viajar, porque estava sendo investigado”, diz ele. O embarque só foi permitido, segundo Raul, porque tinha um enorme ferimento na cabeça depois de ter sido espancado em uma manifestação em defesa dos amigos presos. “Eu fui torturado lá na Maianga [bairro central de Angola] numa manifestação que realizamos. Os policiais abriram minha cabeça com um pau, e sangrava muito. Com isso eu saí do país, a dizer que fui fazer tratamento no Brasil.”
Convidado para participar do grupo de discussões sobre táticas não violentas, Raul não conseguiu transporte para levá-lo à reunião no dia 20 de junho, quando todos foram presos. “E se eu fosse, hoje estava também preso, nessa prisão, que eu acho o cúmulo. Quando num país prendem jovens que leem livros, esse país não está em condições de ser chamado democrático. É um país ditatorial, Salazarista”, diz. Após a prisão dos amigos, Raul continuou a participar de manifestações em Luanda, até que a situação tornou-se insustentável.
“Começaram a me perseguir quando da prisão dos companheiros. No mesmo dia foram até a minha casa. Eu estava lá, mas avisaram-me que chegava a polícia e civis também. Tive que fugir”, lembra. “A minha casa foi invadida quatro vezes. Invadiram sem nenhum mandado de captura, não apresentaram nenhum documento. Eu tinha uma cópia do livro de Gene Sharp, que eles levaram.” Ele também relata ter sido procurado por um grupo de jovens afiliados ao partido governista do MPLA – o que o fez temer pela sua segurança física e decidir fugir do país.
Ele conta que decidiu pedir asilo depois de conhecer “a liberdade que o Brasil tem”. “Aqui no Brasil o meu trabalho é divulgar as violações de direitos humanos em Angola. Tenho que trabalhar em reverter a condenação dos meus colegas, meus companheiros. A luta é longa mas vou ter que conseguir fazer isso”, promete.
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