Após os atentados, competência dos serviços de segurança belgas é questionada
As críticas a Bélgica arrecian à medida que avança a investigação sobre os ataques terroristas
Na quarta-feira, dia 23, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, colocou mais sal nessa ferida da Bélgica, com poucas chances de cicatrizar, e aberta em função dos atentados sangrentos de Paris em novembro do ano passado. As críticas aos serviços de segurança belgas se acirram à medida que são revelados detalhes sobre a forma de atuação dos terroristas.
Erdogan acusa a Bélgica de ter ignorado uma informação essencial, que poderia até mesmo ter evitado os atentados de terça-feira, que deixaram 31 pessoas mortas e cerca de 300 feridas em Bruxelas. Segundo Erdogan, a Turquia avisou que Ibrahim El Bakraoui, um dos suicidas, tentara entrar na Síria e que havia sido deportado no ano passado. A Bélgica alega que não pode prender uma pessoa sem provas de seus supostos atos criminosos, mas se vê obrigada, mais uma vez, a adotar uma postura defensiva diante das acusações mais ou menos abertas de que seu sistema de segurança não está à altura de um país da União Europeia, sobretudo sendo aquele que hospeda as instituições europeias e que é usado como quartel-general da OTAN.
A informação que vai emergindo nas últimas horas aponta para a existência de uma extensa rede de terroristas cuja base de operações é a capital belga.
“Por que vamos colaborar denunciando o que vemos se não vai servir para nada e se nem sequer nos garantem a segurança dentro da comunidade?”
O sal dos turcos é lançado apenas cinco dias depois que a caça de Salah Abdeslam, homem chave nos atentados de Paris, passou a ser outro motivo de constrangimento para as autoridades belgas. Abdeslam, um dos autores dos atentados de Paris, estava foragido há quatro meses e, na sexta-feira, dia 17, foi encontrado na casa da mãe de um amigo em Molenbeek, o bairro no qual o terrorista cresceu. O apartamento fica a poucos metros do local para onde Abdeslam foi após voltar de Paris, e a outros tantos da casa de sua família, na praça principal de Molenbeek, onde além da Prefeitura está a grande Delegacia de Polícia.
Nesta quarta, os vizinhos do bairro disseram que não davam crédito, e consideravam o fato de Abdeslam ser caçado exatamente em um lugar onde deveria estar super vigiado apenas é mais uma demonstração do despiste da polícia e dos serviços secretos, incapazes de ganhar a confiança e as confidências dos locais. “A polícia não é eficiência. Não importa para eles o que acontece aqui. Por que vamos colaborar denunciando o que vemos se não vai servir para nada e se nem sequer nos garantem a segurança dentro da comunidade?”, explicava um vizinho de Molenbeek que pede para se manter anônimo. Apesar de quase todos se conhecerem no bairro, mesmo de vista, costumam não comentar questões delicadas para evitar saber demais.
A política de Molenbeek explicou recentemente que tem muitas dificuldades para recrutar agentes de origem magrebina que falem árabe e que essa falta irremediavelmente os desconecta de uma população que tende a se fechar em si mesma como reflexo em parte da discriminação que enfrentam na sociedade belga.
Carências e cortes de verbas
Com a sede da OTAN e da UE, Bruxelas é base de espiões de todo o mundo. Ninguém viu nada
Às deficiências policiais se somam os cortes que deixaram no limite —com cerca de 600 agentes— os serviços secretos nesses últimos anos de crise e que, depois dos atentados de Paris, os belgas tentem remediar com um aporte de 400 milhões de euros. Alain Winants, que foi chefe dos serviços secretos belgas até 2014 e nos últimos oito anos, coincidindo com o auge do jihadismo, explicou em uma entrevista recente a este jornal que “parou-se de recrutar agentes e os que se aposentaram não foram substituídos. Chegou um momento em que era impossível cortar mais. Vigiar uma pessoa 24 horas por dia requer cerca de 15 a 20 pessoas por suspeito. A segurança tem um preço”. Contou também que a modernização dos serviços secretos belgas demorou muito a chegar, que apenas em 2010 foram legalizadas as escutas telefônicas e que até 1998 simplesmente não houve uma lei que regulamentasse as atividades da espionagem. Mesmo assim, o próprio Winants reconhecia que a segurança não basta, que “é preciso trabalhar em todos os níveis. É preciso atacar os problemas sociais, econômicos, educacionais”.
A comoção depois dos atentados de Paris em novembro acelerou medidas pendentes, mas que ainda seguem o curso legislativo correspondente, entre elas permitir vistorias domiciliares à noite, atos de preparação para a realização de atos terroristas, como aluguel de carros ou a compra de cartões pré-pagos, e a “incitação a deslocar-se ao exterior com fins terroristas”.
Punição aos recrutadores
Com esta última medida, tenta-se castigar os recrutadores, que durante anos operaram à vista de quem quisesse ver, como denunciam agora as famílias de jovens que viajaram para a Síria para engrossar as fileiras islâmicas. Durante os primeiros anos da guerra da Síria, a marcha de combatentes belgas não era um assunto de importância crucial como agora. Por um lado, as autoridades sentiam que era uma forma de perder de vista algumas pessoas problemáticas do bairro e, de outro, tratava-se afinal de combater o regime sanguinário de Bachar el Assad. À medida que o autoproclamado Estado Islâmico foi tomando forma, as autoridades se deram conta do problema descomunal representado pela presença de retornados à Europa, como deixou claro o caso de Abdelhamid Abaaoud, cérebro dos atentados de Paris. A Bélgica é um bom fornecedor de efetivos para o Estado Islâmico e o Jabat al Nusra. Até 562 combateram na Síria ou no Iraque, segundo os cálculos do pesquisador Pieter van Ostaeyen. Esse número transforma a Bélgica no país da UE com mais jihadistas per capita, com 41,96 por milhão de habitantes, segundo Van Ostaeyen.
A aprovação de algumas destas medidas legislativas teria sido complicada há apenas um ano, já que o debate sobre o equilíbrio entre as liberdades e a segurança é especialmente intenso na Bélgica. É previsível que os atentados desta semana tenham pulverizado qualquer resistência ao assunto por parte da opinião pública na Bélgica.
Cooperação francesa
A Bélgica se tornou um ninho de terroristas. Também é um dos países da UE que mais envia jihadistas à Síria.
As falhas dos serviços de segurança belgas deram margem a muitas críticas, a última sendo a do ministro das Finanças francês, Michel Sapin, que acusou os belgas de serem “inocentes” na administração de comunidades com forte presença muçulmana, como a estigmatizada Molenbeek. O primeiro-ministro francês, Manuel Valls, em visita à Bélgica, anunciou que a cooperação antiterrorista entre França e Bélgica “vai se intensificar nas próximas semanas e nos próximos meses para prevenir novos atos terroristas”.
Os belgas, porém, não estão sozinhos em sua cegueira. Bruxelas é um verdadeiro ninho de espiões procedentes do mundo todo. O quartel-general da OTAN e da União Europeia têm suas sedes principais na capital belga, onde também se assentam as representações permanentes dos países. Os serviços secretos de todo o mundo têm agentes em Bruxelas, às vezes na forma de agregados culturais, jornalistas e homens de negócios. O certo é que esse enxame de 007s permaneceu alheio ao que se organizava em Molenbeek, em Schaarbeek ou em Forest, todos bairros situados a poucos quilômetros do bairro europeu.
O comissário do interior europeu, Dimitris Abramopoulos, fez menção ontem a outro dos grandes assuntos pendentes na luta antiterrorista europeia e que também transcende as autoridades belgas. Abramopoulos disse que “os Estados têm de confiar uns nos outros”. “Precisamos de mais coordenação e de compartilhar mais informação”, acrescentou. O coordenador antiterrorista da UE, Gilles de Kerchove, afirmou que deseja que “os serviços de informação alimentem mais as plataformas europeias [...], porque cruzando todas as informações chegaremos a estabelecer mais vínculos” entre suspeitos, disse à rádio francesa Europe 1. Fontes da Comunidade explicam, no entanto, que apesar de não haver uma base de dados de Schengen, na qual os países devem introduzir informação sobre suspeitos, carros roubados ou passaportes para que emitam os alertas, na verdade nem sempre isso é feito porque os serviços secretos dos países querem proteger suas fontes e são reticentes a compartilhar com países nos quais não confiam totalmente.
O especialista em segurança, Daniel Keohane, aponta a renacionalização das políticas de defesa como uma das causas da menor efetividade em matéria de segurança, informa Álvaro Sánchez. “Apesar de às vezes agirem integrados à OTAN ou à UE, quase todos os Governos preferem outro tipo de alianças, sejam regionais, bilaterais ou coalizões ad hoc”, afirma Keohane. Uma dessas alianças é exatamente a que os belgas mantêm com os franceses, que inclui agentes sobre o território que participaram de ocorrências como a do bairro de Forest, onde um policial foi ferido e um suposto terrorista, abatido.
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