Viagem ao extremo norte
A cidade norueguesa mais setentrional do mundo e, segundo seus habitantes, também a mais feliz
Só deve haver um lugar no mundo onde alguém pode entrar com um rifle e usando uma balaclava em um banco sem que ninguém se perturbe: Longyearbyen. Essa frase, pronunciada por um dos dez policiais que cuidam de um território tão grande quanto a Irlanda, pode servir para resumir a vida na cidade mais setentrional do mundo, capital do arquipélago de Svalbard, de soberania norueguesa. Tem 2.240 habitantes, de 40 nacionalidades, e um enorme valor estratégico que só aumenta com a mudança climática, que propicia novas rotas marítimas através do Polo Norte e um acesso mais rápido aos seus imensos recursos naturais. O único problema de segurança são os ursos polares –cerca de 3.000 nas três ilhas principais–, razão pela qual a lei exige que qualquer cidadão que saia dos poucos núcleos populacionais deva estar armado com um rifle de calibre suficiente para derrubar uma criatura imprevisível, perigosa e que pode pesar até 800 quilos. “Existe muito interesse estratégico por essa cidade tão perto do Polo, em saber como conseguimos fazer com que ela funcione e uma comunidade situada tão ao norte seja próspera”, diz Arild Olsen, um ex-líder sindical da mineração e atual prefeito de Longyearbyen.
Uma das primeiras imagens que surpreendem ao ver essa plácida localidade de casas de madeira de cores diferentes é que em nenhuma delas sai fumaça das chaminés, apesar do frio polar (no sentido literal do termo, pois o Polo fica a 1.400 quilômetros). A madeira, como qualquer outro produto, é um luxo porque nas ilhas Svalbard não crescem árvores, nem é possível cultivar algo: o solo é permafrost (terra congelada) e 60% do território é composto por geleiras. Tudo –a lenha, as laranjas, os carros ou o leite– é levado de avião ou barco, exceto o carvão mineral e a carne de foca e rena. Estabelecer-se nesse lugar do mundo representa um enorme esforço de infraestrutura.
A 1.000 km do Cabo Norte, trata-se de um gigantesco deserto gelado no meio do Oceano Ártico, muito perto da área de gelo permanente do Polo. No entanto, ele tem uma grande vantagem: a Corrente do Golfo, mais quente, impede a formação de gelo durante grande parte do ano na costa leste e faz com que as temperaturas sejam menos extremas do que em outros lugares naquela latitude. Longyearbyen tira proveito de um grande porto natural em um fiorde e se estende para o interior cercada por montanhas ao longo de um vale. Situada a 78º 15 ‘ N, está ligeiramente mais ao norte que Qaanaaq e Siorapaluk, na Groenlândia. As cidades mais setentrionais do Alasca estão a 71º N. O Círculo Polar Ártico, a 66,5º N.
No entanto, apesar de ser muito mais acessível do que outros lugares do Ártico, ela não tem povos nativos: ninguém vivia lá antes da chegada do explorador holandês Willem Barents, em 1596. Agora é o contrário. Não importa com quem se fale, seja a caixa do supermercado colombiana, dois operários poloneses, uma norueguesa que trabalha como guia de turismo e mantém uma manada de 12 cães de trenó em uma casa fora da cidade, um venezuelano que trabalha na universidade, enquanto sua parceira trabalha com vendas em uma empresa de turismo, uma glacióloga francesa que está prestes a pegar o avião de volta, uma enfermeira aposentada norueguesa que montou uma empresa, o pastor ou um ex-repórter policial de Los Angeles que agora dirige um jornal local na internet (bem, dirige e escreve, porque é o único trabalhador). Apesar do frio (embora este ano não tenha havido inverno, as temperaturas podem chegar a 40 graus abaixo de zero e no verão não passam dos 10), dos ursos e das geleiras, todos descrevem a vida em Svalbard como o Eldorado polar.
“Estivemos aqui nas férias e nos perguntamos como seria viver em Svalbard. Então decidimos dar o salto, tentar a experiência e já estamos aqui faz dois anos e meio”, diz Jorge Kristiansen, um venezuelano de 37 anos. A tranquilidade, a segurança, a sensação de viver uma aventura e a solidez de uma comunidade que confia da bondade dos desconhecidos –20% da população muda a cada ano, de modo que, de fato, ninguém é de lá, todos são estrangeiros– são as principais razões citadas. “A escuridão é tenaz”, diz Claudia Antonsen, colombiana de 45 anos, sobre a longa noite polar À qual resiste graças a doses generosas de vitamina D. Durante quatro meses é noite e durante outros quatro é dia. “A quietude, a neve, a aventura, a natureza, a beleza”, acrescenta para explicar por que decidiu se estabelecer lá, vinda de Bogotá. Casada com um norueguês que trabalha como motorista de táxi, ela é empregada do supermercado local, que oferece produtos de todo o mundo por preços absurdos: 3,75 euros (cerca de 15,40 reais) por um litro de leite, 2,41 por um iogurte, 6 por uma lata de atum Ortiz ou 5,7 euros por uma cesta de tomates-cereja. A vantagem é que é uma zona livre de impostos indiretos e que os noruegueses recebem uma ajuda de cerca de 20.000 euros para se instalar lá.
Não se pode enterrar ninguém lá porque, por causa da permafrost, os corpos nunca se decompõem
“É como uma bolha. Você se sente muito seguro, mas nunca devemos esquecer que estamos em um lugar em que a natureza controla tudo. Nunca se deve perder o respeito”, diz Heidi Sevestre, uma pesquisador francesa de 28 anos que, depois de quatro anos em Svalbard, está preparando a volta para casa, nos Alpes, uma transferência que inclui a venda de sua moto de neve. Kristin Jaegger Wexsahl, de 25 anos, está há quatro em Svalbard. Sua grande paixão são os cães e ela tem 12 animais. Como não pode ter tantos na cidade, vive em uma casa de campo nos arredores. Trabalha como guia turística e não lhe ocorre qualquer outro lugar para viver. No entanto, embora as ilhas Svalbard tenham a maior área de natureza virgem da Europa, Longyearbyen está longe de ser o território selvagem de suas origens.
A cidade tem um aeroporto internacional, um porto no qual podem atracar navios de cruzeiro, 650 camas de hotel, uma universidade importante com 300 alunos e planos para dobrar o seu número, cafés, restaurantes japoneses, tailandeses e internacionais, colégios, um centro cultural, um museu... Quase tudo vem acompanhado do mesmo slogan: a cervejaria (inaugurada em 2014) mais ao norte do mundo, o supermercado mais setentrional do mundo, a chocolateria mais ao norte do mundo (a especialidade são os bombons em forma de urso polar), a igreja mais setentrional do mundo... O melhor restaurante da cidade, o Huset, oferece alta cozinha e possui uma das adegas mais cheias do norte da Europa (os guias dizem que é a melhor, mas eles relativizam). Não deixa de ser surrealista que, depois de degustar sofisticados arenques em conserva, deva-se sair com algum cuidado, porque, quando se está no limite da cidade, a poucos metros começa a área em que, teoricamente, é obrigatório andar armado por causas dos ursos. E não é piada: em 1995, uma visitante foi devorada na periferia da cidade e em 2011 um estudante morreu em um ataque durante uma caminhada.
“É uma comunidade pequena, mas não parece”, diz o pastor Leif Magne Helgesen, que está na ilha há 12 anos e se tornou um especialista no Ártico, coordenador do ensaio The Ice is Melting (o gelo está derretendo). “Este é um lugar muito exigente, em que as pessoas normalmente ficam quatro anos. É uma comunidade muito solidária porque ninguém tem ninguém aqui, então, finalmente, nos ajudamos mutuamente”. Sobre as mudanças na cidade, explica: “O interesse pelo Ártico é econômico e estratégico, sem dúvida. O dinheiro move tudo. Mas há também um interesse científico devido às mudanças climáticas: o que acontece aqui vai ter influência em todo o mundo”. A conversa acontece num fim de tarde de terça-feira, na igreja, que permanece sempre aberta. Naquela noite foi realizada uma missa católica (o templo é protestante, mas aberto às demais confissões cristãs) e, em seguida, oferecem café e bolos em confortáveis poltronas. Ouve-se falar norueguês, dinamarquês, filipino, italiano, espanhol... As ilhas Svalbard começaram a ser exploradas no século XVII por baleeiros e caçadores. Não é coincidência que uma pequena baía se chame Vizcaya porque os bascos tinham uma habilidade especial para capturar exemplares grandes e eram visitantes assíduos desde 1611. De fato, a frota galega continua indo à região para capturar bacalhau. Longyearbyen foi fundada em 1906 como uma cidade mineira por um aventureiro e empreendedor bostoniano, John Munro Longyear, e seu sócio Frederick Ayer, na ilha principal, Spitsbergen. Depois da Primeira Guerra Mundial, foi assinado o Tratado de Svalbard, que reconhece a soberania norueguesa sobre o território. Um princípio de não discriminação permite que qualquer signatário do acordo estabeleça atividades comerciais, desde que respeite a lei norueguesa e a autoridade do governador da ilha, nomeado por Oslo por períodos de três anos. O tratado também impede a presença de forças militares permanentes, o que provocou não poucas polêmicas durante a Guerra Fria.
A Rússia mantém uma cidade mineira, Barentsburg, com cerca de 500 habitantes, que é uma das excursões mais impressionantes que podem ser feitas na ilha. A viagem de moto de neve (no inverno só se chega dessa forma ou de helicóptero; no verão, de barco) a partir de Longyearbyen dura cerca de três horas e mostra quanto é dura e bela a paisagem gelada até chegar a uma aldeia estacionada na URSS da década de oitenta. Havia uma segunda cidade russa, hoje abandonada, chamada Pyramiden. O resto dos assentamentos são estações científicas, tais como Ny-Alesund, que podem servir para resumir o interesse internacional pelo Ártico, pois reúne equipes de China, Alemanha, Reino Unido, Japão, Noruega, Coreia do Sul e Estados Unidos. São cerca de 50 pessoas no inverno e 200 no verão. Hornsund, uma base polonesa, tem apenas 15 pessoas.
O princípio de que qualquer um pode se instalar é válido para os países signatários do tratado (cerca de 40 no total, entre eles a Espanha; a Coreia do Norte foi a última a assinar, no fim de fevereiro), mas também para os indivíduos. Na sede do Governo local, uma folha informativa explica as condições para se mudar para o Polo, que consistem basicamente em ter um emprego remunerado ou uma forma de subsistência (não se pode ir tentar a sorte), um alojamento (consequência do anteriormente exposto) e não depender de ninguém (não há serviços sociais, mas existe um hospital). Durante seus primeiros 100 anos de existência, Longyearbyen foi uma cidade mineira, dominada pela empresa Store Norske, com trabalhadores que passavam 15 dias lá e 15 na Noruega continental.
Os ursos polares são uma ameaça, mesmo nos limites urbanos
“Em 1985 eu vim pela primeira vez, e isto era uma comunidade mineira, somente mineira”, diz Marie Haga, diplomata norueguesa, ex-líder do Partido Verde, que ocupou várias pastas ministeriais na década de noventa e agora, como diretora geral da ONG Crop Trust, viaja frequentemente para Svalbard porque abriga um banco de sementes internacional. “Mudou muito rápido. Ainda era a Guerra Fria. Antes só estávamos aqui por razões de soberania, agora é o turismo, a pesquisa”. Só resta uma mina em operação, que serve exclusivamente para alimentar a usina de Longyearbyen, a única desse tipo que continua aberta na Noruega e cujo futuro está em permanente discussão.
Com esse clima e quatro meses de escuridão, há poucas alternativas energéticas viáveis que não passem pelo carvão. No entanto, a única mina atualmente rentável foi abandonada na década de noventa, como uma espécie de Chernobyl, onde ainda estão afixados calendários e os turnos de trabalho do ano em que foi fechada. E é rentável porque se tornou uma nova atração turística. Um passeio por suas instalações mostra quanto os tempos mudaram.
Da época do carvão ficou um hábito que faz de Longyearbyen um lugar bastante caseiro: todo mundo anda de chinelos ou de meias quando está no interior (no passado, os mineiros sempre tinham carvão incrustrado nas botas). Exceto no supermercado e em algum bar, é preciso tirar os calçados em todos os lugares, ao entrar na Prefeitura ou na sede do Governo, na universidade ou em hotéis e restaurantes. De fato, como explica Arve Johnsen, de 37 anos, um dos dez policiais do arquipélago, a maioria dos crimes tem a ver com furto de botas deixadas na entrada de edifícios públicos. Os últimos crimes de que se têm memória foram o de um mineiro que esfaqueou outro em Barentsburg, em 2013, e uma batida policial antidroga em 2015, que terminou com 11 presos por fumar maconha. A presença de um urso na cidade em 2014, que teve de ser anestesiado e levado de helicóptero para a outra extremidade das ilhas Svalbard porque tinha se acostumado a procurar comida no assentamento, completa o quadro de problemas graves de segurança. Nem casas nem carros são fechados habitualmente.
A maioria dos crimes tem a ver com furto de botas deixadas na entrada de edifícios públicos
Tanto o mineiro esfaqueador como os consumidores de maconha foram enviados para a Noruega porque a ilha carece de prisão. Também os mortos são levados para o continente. Não se pode enterrar ninguém lá porque, por causa da permafrost, os corpos nunca se decompõem. De fato, em 1999 foi possível extrair amostras do vírus da gripe espanhola, que matou 40 milhões de pessoas depois da Primeira Guerra Mundial, de seis corpos enterrados nas Svalbard em outubro de 1918. Nada apodrece no solo congelado.
“A economia está mudando. Durante 100 anos foi uma cidade mineira e agora está se tornando algo muito diferente”, diz a governadora, Kjerstin Askholt, de 54 anos, que foi diretora-geral de Assuntos Polares no Ministério da Justiça, em Oslo, e que é a maior autoridade do Governo norueguês desde outubro de 2015. “Muita gente pensa que o turismo e a pesquisa são o futuro das Svalbard. Mas também existe a pesca”, continua. Entre 2014 e 2015, o turismo cresceu 11%, com 60.000 pernoites. Também atracaram vários navios de cruzeiro que, de repente, despejam 3.500 turistas em uma cidade de 2.240 habitantes. “Os visitantes são essenciais, mas não podemos nos tornar um gueto turístico”, explica Ronny Brunvoll, diretor da Visit Svalbard. Mark Sabbatini, um ex-jornalista policial de Los Angeles, que depois de várias andanças pelo mundo acabou por se instalar em Svalbard e publica um jornal sobre o Ártico, Icepeople, define o problema com palavras mais cruas: “Isto pode ser qualquer coisa, menos tranquilo. Durante o verão, com os cruzeiros, se torna uma versão ártica da Disneylândia”.
Mas a transformação mais profunda não está relacionada com as visitas, mas com os efeitos da mudança climática. “As reivindicações nacionais sobre territórios no Ártico são baseadas nas massas de terra, mas a mudança climática pode introduzir novas rotas marítimas”, explica Frank Nilsen, oceanógrafo e diretor da Universidade de Svalbard (UNIS). “É uma área que certamente vai ganhar importância geopolítica. O tráfego de navios aumentará e Longyearbyen pode ocupar um lugar fundamental em todo esse processo”, continua. Também a pesca, com muitas espécies que se deslocam cada vez mais para o norte, será uma nova fonte de recursos e de problemas.
Ouve-se na ilha falar norueguês, dinamarquês, filipino, italiano, espanhol...
Os geólogos acreditam que um quinto dos recursos de petróleo e gás não descobertas do mundo está mais adiante do Círculo Polar Ártico, além de todos os tipos de minerais. Os países com acesso ao Ártico são Rússia, Dinamarca –por meio da Groenlândia–, Canadá, Estados Unidos e Noruega. Mas o estatuto das Svalbard e a facilidade de acesso fazem das ilhas um território muito desejado. Com os atuais preços do petróleo e a crise do setor, sua importância imediata reside principalmente que o degelo –o Painel sobre a Mudança Climática da ONU considera que desde 1979 foi perdida 40% da camada de gelo do Polo– permitirá a consolidação de novas rotas marítimas que, através do norte, ligarão o Atlântico à Ásia, sem passar pelo canal de Suez. Uma reportagem recente da National Geographic sobre a economia do Ártico estimou que a rota do norte é cerca de um terço mais curta, o que permite economizar cerca de 180.000 dólares em combustível. No entanto, uma vez que o caminho ainda não está completamente aberto, foi usado por apenas 19 navios em 2013, frente aos 17.000 que passaram pelo Canal de Suez.
Essa facilidade de acesso e a presença de uma cidade como Longyearbyen torna as Svalbard um observatório científico privilegiado desse inquietante processo; mas também um estratégico objeto de desejo. As duas grandes novidades de Longyearbyen nos últimos tempos foram uma avalanche que em dezembro matou uma pessoa e o intenso rumor de que o bilionário chinês Huang Nubo, do Beijing Zhongkun Investment Group, iria comprar um dos dois únicos terrenos do arquipélago em mãos de particulares. De fato, em 2011, ele fez importantes e polêmicos investimentos na Islândia e, em 2014, no norte da Noruega. “Não há dúvida de que o bilionário Huang Nubo é uma eminência parda do Partido Comunista e das autoridades do país asiático”, disse um editorial do jornal Nordlys. “Aquilo nunca se concretizou”, afirma Sabbatini, “mas é evidente que o Ártico é cada vez mais importante e atraente e que todos os países tentam estar aqui”. A chave para essa nova corrida do ouro é o lugar mais feliz do mundo, que deseja e necessita de mudanças e, ao mesmo tempo, as teme porque sabe que o futuro passa por sua remota latitude.
elpaissemanal@elpais.es
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