_
_
_
_
_

Dona María viu seu rosto se apagar

Uma dezena de idosos com hanseníase sobrevive ao passar do tempo no último leprosário do México

J. M. Ahrens
María Cárdenas, paciente com hanseníase, em um hospital do México.
María Cárdenas, paciente com hanseníase, em um hospital do México.

Há muito tempo, diante do espelho, María Cárdenas viu seu rosto se apagar. Ocorreu lentamente, com uma cadência quase bíblica. Um olho ficou borrado, depois o nariz afundou, em seguida foram as orelhas, o queixo se desfez e até os dedos desapareceram. Mesmo depois de tudo isso ela continuava vendo, no espelho, a garota de 14 anos, órfã e alegre, que era antes de ser devorada pela hanseníase e separada do mundo.

Passaram-se 63 anos e María, que hoje é Dona María, continua de bom humor. Inabalável, a idosa saiu no pátio ensolarado para celebrar a festa de La Candelaria. À sombra das árvores, sentou-se ao lado de Lucio, 86 anos, outro paciente de rosto apagado. Ambos usam cadeira de rodas. Ao seu redor revoam os médicos e enfermeiros do último leprosário do México, agora chamado Hospital Dermatológico Doutor Pedro López. Abraçam e tocam os pacientes continuamente. O carinho faz parte do tratamento contra o estigma que acompanha a hanseníase. “Mesmo que seja curada, marginaliza quem a sofreu, sua família e o próprio lugar onde foi descoberta”, afirma o diretor estatal de Vigilância Epidemiológica, Víctor Torres.

Mais informações
A luta contra uma doença que conhecemos "pouco e mal"
A dor da hanseníase
Hanseníase, a luta contra uma doença esquecida
A hanseníase que não acaba

O sanatório forma uma ilha estranha. Sua criação foi decidida pelo presidente Lázaro Cárdenas depois de um protesto de pacientes que exigiam um lugar onde pudessem ser atendidos. O general, impressionado por aquela maré de mutilados no Zócalo (praça central), desapropriou uma rica fazenda em Zoquiapan (Ixtapaluca), no Estado do México, e a concedeu, sob direção médica, aos próprios pacientes. Em 1º de dezembro de 1939 abriu suas portas um dos experimentos mais singulares das Américas.

Em seus 34 hectares, chegaram a conviver 680 pessoas. De pavilhões amplos e ventilados, o lugar se transformou em uma pequena cidade para os pacientes e suas famílias. Dispunha de hortas, escola, igreja, ambulatório, sapataria, barbearia, cassino e até uma prisão com cinco celas vigiada por um paciente policial. Os internos viviam em uma bolha, com ritmos próprios. Havia bailes, esportes, quermesse. Em alguns casos, até se casavam. Dona María se casou. Conheceu seu marido, também hanseniano, em Zoquiapan, e teve sete filhas com ele. “Foram bons anos. Antes de perder minha perna esquerda, eu adorava dançar, dançávamos no refeitório, tocavam músicas como El zopilote mojado ou La Rielera. E nos divertíamos muito”, recorda María.

Essa efervescência começou a esmorecer no final dos anos 1950. Os leprosários perderam o sentido diante do avanço da medicina. Apesar de ser uma doença de incubação lenta, cujos sintomas podem demorar 20 anos a aparecer, as combinações de fármacos trouxeram a cura e o tratamento dos pacientes reduziu drasticamente os contágios. O bacilo, transmitido pelas gotículas nasais e orais de pacientes não tratados, está em vias de erradicação no México (175 casos no último ano). E o mesmo ocorreu com Zoquiapan.

Pouco a pouco, com as internações cada vez mais raras, a cidade dos leprosos se reduziu até se tornar uma comunidade de 11 idosos isolados. Ao seu redor, como em suas vidas, desenha-se agora uma paisagem em retirada. Nos pavilhões habita o abandono e só um último reduto de casas, com suas flores e palmeiras, mantém a ficção da normalidade. “Sentem melancolia, muita, de quando eram jovens e se divertiam neste lugar”, diz a encarregada do tratamento médico, Isabel Quirós.

Os internos, com sequelas graves, já são muito idosos para se mudar. Quase nenhum anda, e os que podem, não têm com quem sair. Nesse lento ocaso, inclinam a cabeça e guardam longos silêncios. Todos, menos María. Ela, em sua cadeira de rodas, segue em frente. Pôs um gorro cor-de-rosa e óculos de sol. “Sou muito namoradeira”, diz. E desata a rir. Dá os braços ao doutor Torres e ao jornalista, e implora que cantem algo para ela. O médico, a duras penas, começa uma ranchera. Quando acaba, Dona María, desafiadora e mexicana, canta a La Rielera. A canção revolucionária faz os presentes se calarem. Uma voz doce e quase infantil sai da boca dessa senhora:

— Yo soy rielera / tengo mi Juan / él es mi vida / yo soy su querer.

É María Cárdenas diante do espelho; órfã e alegre.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_