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“A classe dominante (masculina e hétero) não abandonará seus privilégios porque enviamos tuítes”

Paul B. Preciado, filósofo transexual e feminista, entra no debate francês sobre o #MeToo

O filósofo Paul Preciado.
O filósofo Paul Preciado.Lea Crespi

Nômade e poliglota, Paul B. Preciado pertence a uma geração de novos filósofos cosmopolitas que tentam imaginar uma transformação da sociedade, dos nossos modos de produção de valor e de conhecimento. Subversivo e radical, absolutamente irreverente, sempre preciso e documentado, Preciado segue a tradição iniciada por Nietzsche, na qual a filosofia é um modo de vida. Diante de um feminismo convencional que persegue a igualdade jurídica das mulheres brancas, heterossexuais e de classe média, este filósofo transgênero propõe uma revolução que questione a diferença sexual e as hierarquias raciais e de gênero que dão visibilidade aos insubmissos tradicionalmente deixados à margem: trabalhadores sexuais, migrantes, atrizes pornô, lésbicas, as transexuais e os transexuais, diversos funcionais, em suma, a queer nation. "Sou trans e feminista. Meu feminismo é o punk contracultural dos filmes pornográficos de Annie Sprinkle, da literatura de Virginie Despentes, dos quadrinhos de lésbicas de Alison Bechdel e dos pornôs transgêneros de ficção científica de Shu-Lea Cheang ", diz.

Preciado revisitou alguns desses pontos em artigo publicado no jornal francês o jornal Libération nesta semana no qual comenta o debate em torno do movimento #MeToo e das políticas contra o assédio sexual. No texto "Carta de um homem trans ao antigo regime sexual", o filósofo que nasceu em 1970 na cidade espanhola de Burgos como Beatriz, diz que gostaria de se "manifestar enquanto contrabandista entre dois mundos: o 'dos homens' e o 'das mulheres". "Deixe-me dizer-lhes, do outro lado do muro, que o quadro é muito pior do que a minha experiência como lésbica me permitiu imaginar. Desde que vivo como-se-eu-fosse-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política) consegui verificar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará seus privilégios porque enviamos muitos tuítes ou demos alguns gritos", ironiza Preciado, na versão traduzida para o português que circula nas redes sociais no Brasil. "É preciso aprender a desejar liberdade sexual", prega.

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Para o filósofo, autor do Manifesto contrassexual, traduzido em oito idiomas, as denúncias e a exposição da violência são parte de uma revolução sexual irreversível, porém "lenta e sinuosa". Ele defende a estética queer ante a estética heterossexual: diz que é a "estética grotesca e assassina da heterossexualidade" "que renaturaliza diferenças sexuais e coloca homens na posição de agressores e mulheres na de vítimas (dolorosamente agradecidas ou felizmente incomodadas)". "É possível, dentro da ficção teatral da sexualidade, desejar lamber as solas dos sapatos, querer ser penetrado por cada abertura ou caçar o amante em um bosque como se fosse uma presa sexual. No entanto, dois elementos diferenciais separam a estética queer daquela da normalização hetero do antigo regime: o consentimento e a não naturalização das posições sexuais. A equivalência dos corpos e a redistribuição do poder", afirma.

“Esta será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida.

Ensaio corporal

Foi há seis anos que Preciado iniciou um processo de "transição lenta", aplicando testosterona e, apenas dois anos, decidiu mudar seu nome para Paul. A partir dessa experiência nasceu primeiro Testo Yonqui (2008), um ensaio corporal onde descreve o efeito dos hormônios. Com este livro, hoje um clássico nas universidades americanas, este herdeiro de Judith Butler e William S. Burroughs tornou-se um dos filósofos e ativistas sexuais mais relevantes na arena internacional.

“Foucault transformou a nossa maneira de entender a história de sexualidade, mas sua análise ia até o século XIX, sem considerar os processos de colonização e globalização. Depois da segunda Guerra Mundial, passamos de um regime disciplinar em que se procurava fazer com que cada ato sexual fosse um ato reprodutivo para um regime que eu chamo de ‘farmacopornográfico’, em que a produção de prazer e a incitação à masturbação integram um dispositivo mais amplo de controle e produção de capital. Vivemos na era da pílula anticoncepcional e do Viagra. Mas existem outras técnicas de controle capitalista: as audiovisuais e de monitoramento, com suas próteses, o telefone, a televisão, Internet. Nossa forma de amar é kitsch e telecomunicativa”.

Sempre em busca das afinidades produtivas entre marxismo e desconstrução, o que os pós-estruturalistas chamaram de écriture, Paul B. Preciado seguiu seus mestres, Ágnes Heller e Jaques Derrida, para os quais a filosofia é uma fonte de compreensão crítica que pode ir mais além de uma simples descrição do Estado ideal: “Entendo a escritura como uma forma de ação direta. Me interessa o corpo, mas não como organismo natural, e sim como artifício, como arquitetura social e política. Meu projeto consiste em submeter a própria identidade à crítica”. E afirma que não existe uma ortodoxia queer, mas sim diversas maneiras de ser transexual. “O importante é manter o processo de experimentação crítica aberto. A identidade e a orientação sexual são plásticas, ficções historicamente construídas, o problema é que há ficções legitimadas socialmente e outras que carecem de reconhecimento político”.

Preciado se formou nos EUA com uma bolsa Fullbright no final dos anos 90, quando a filosofia e os estudos culturais, sob os impactos dos movimentos sociais, deram lugar à teoria queer e pós-colonial. Estudou inicialmente na New School for Social Research e fez doutorado em Filosofia e Teoria da Arquitetura na prestigiosa Universidade de Princeton. A convite de Derrida, foi por dez anos professor de teoria do gênero e história política do corpo na Universidade de Paris VIII. Mas o que caracterizou seu trabalho foi a hibridação entre teoria, ativismo e atuação artística, especialmente no âmbito dos museus. Trabalhou no Centros de Estudos Avançados do Museu Reina Sofía, em Madri, e foi diretor de Programas Públicos e do PEI (Programa de Estudos Independentes) do Museu d’Art Contemporani de Barcelona (Macba), colocando em prática o que ele mesmo chama de “utopias experimentais de pedagogia radical”.

Carta do filósofo traduzida e compartilhada nas redes brasileiras.

O filósofo francês Michel Foucault inventou a palavra “biopolítica” para se referir aos mecanismos não repressivos do poder que controlam a forma que atribuímos a nossas vidas, nossa organização do tempo, nossas maneiras de amar e desejar. Mais um efeito do neoliberalismo, que não se satisfaz com indivíduos disciplinados, mas sim faz com que interiorizemos os seus objetivos e acabemos convencidos de que eles são normais e desejáveis, independentemente, até mesmo, da nossa própria apreciação. Desse ponto de vista, Preciado acredita que o poder que nos oprime em termos políticos é também um objeto estético que nos capacita em seu gozo e expansão próprios. “O mais duro é comprovar que desconhecemos os dispositivos políticos que nos constituem como sujeitos, dispositivos que às vezes nos controlam, mas que também poderiam nos empoderar”, observa. Desse “pessimismo libertário” (com perdão pelo oxímoro), nasceu o seu livro Pornotopia, Arquitetura e sexualidade ‘Playboy’, em que disseca os mecanismos culturais do “primeiro bordel multimídia da história”, essa Disneylândia para adultos criada por um dos precursores do erotismo gráfico, Hugh Hefner. “Se fosse possível pesar a história como se pesa um objeto, seria necessário dizer que o contrato sexo-político e econômico que as mulheres estabeleciam dentro da mansão Playboy não era mais vexatório do que o contrato matrimonial heterossexual dos anos cinquenta. A dona de casa branca do pós-guerra era uma trabalhadora sexual, doméstica e reprodutiva em tempo integral, não remunerada e cujos direitos econômicos e políticos eram extremamente limitados. E tudo isso dentro de uma situação hegemônica”, argumenta. “Na Playboy se teatraliza a identidade masculina. Seu nicho é como o cenário do Big Brother. Hoje em dia, os nossos espaços domésticos parecem esse estúdio de televisão, um porto de telecomunicações e um centro de consumo. Nós nos fechamos com os nossos computadores portáteis, como Hefner em sua cama redonda e ultraconectada”.

Preciado, que dirigiu o  Setor de Programas Públicos da Documenta 14 de Kassel (2017), conclui: “Da mesma forma que Galileu rejeitava a ideia de que o Sol girava em torno da Terra, eu procuro me contrapor à verdade natural das identidades sexuais, raciais ou nacionais”.

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