_
_
_
_
_

Arquitetura imprópria para as elites

Coletivo Assemble ganha o Prêmio Turner por trabalho realizado em bairro degradado de Liverpool. Establishment artístico questiona: isso é arte?

Pablo Guimón
Os integrantes do Assemble, durante a construção da Sugargouse Studios, em Londres.
Os integrantes do Assemble, durante a construção da Sugargouse Studios, em Londres.Assemble

A cada outono, graças ao Prêmio Turner, o público britânico faz o mesmo questionamento estéril: isso é arte? Tubarões em formol, camas bagunçadas com cuecas sujas, quadros pintados com cocô de elefante. O rebuliço dura apenas alguns dias, quando novamente se levanta a barreira que separa o establishment artístico do mundo real. O Turner foi um mecanismo eficaz para estender os limites da arte. Com o tempo, virou um símbolo dessa elite que, edição após edição, ri com condescendência ao ler as manchetes dos tabloides, incapazes de compreender a sutileza das suas provocações.

Mas algo mudou este ano. Um leve giro que devolveu ao prêmio de mais prestígio da arte britânica um pouco da influência perdida. A pergunta banal voltou a ser ouvida. A diferença é que, desta vez, quem a faz é o próprio establishment artístico.

Mais informações
Polêmico arquiteto espanhol impulsiona a transformação do Rio
O artista argentino que irritou o Papa Francisco
Uma casa pelo preço de um carro

Quem venceu o Turner de 2015 foi um bairro. Quatro ruas de um subúrbio degradado de Liverpool, com habitantes inconformados. Um humilde movimento de resistência cidadã. Um punhado de aspirantes a arquitetos, menores de 30 anos, que compõem o coletivo Assemble e que, ao começarem a trabalhar com seus vizinhos, abriram, sem querer, um debate sobre o papel da arte e da arquitetura depois da Grande Recessão.

Um debate que certamente eles preferiam que não ocorresse. "Há fascinação demais em como você deve chamar a si mesmo", opina Anthony Engi-Meacock, um dos 18 membros do Assemble. "Nós pensamos que o importante é o trabalho e que o chapéu que colocam em você é irrelevante. Estamos interessados no aspecto político. A arte pode ser usada para transformar as vidas das pessoas? Essa ideia de mercado é relativamente recente, a arte é mais complicada que isso. Mas somos muito jovens e não vamos, de repente, virar especialistas em nada. Fico feliz que o debate esteja acontecendo longe de nós".

Engi-Meacock conversa com o EL PAÍS na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Westminster, onde ministra aulas, assim como os outros companheiros de Assemble, nenhum dos quais já completou a formação exigida para exercer a profissão de arquiteto no Reino Unido. Desde que ganharam o Turner, em 8 de dezembro, o interesse midiático é tão grande que tiveram que dividir as entrevistas entre os membros. Com sua camisa quadriculada, seus óculos sem moldura, seu cabelo despenteado e seu Macbook, poderia passar por qualquer um dos estudantes que vagam pela Faculdade. Apenas cinco anos atrás, ainda era um deles.

Quem venceu o Turner de 2015 foi um bairro. Quatro ruas de um subúrbio degradado de Liverpool, com habitantes inconformados.

"Saímos da Universidade no meio da recessão e não havia muito trabalho", explica. "A Assemble nasceu de um desejo de construir algo juntos. O grupo é o resultado do primeiro trabalho que fizemos".

Falam da Cineroleum, a transformação temporária de um posto de gasolina abandonado em uma sala de cinema, realizada em 2010 no leste de Londres. Uma cortina de placas de isolamento de telhados se desdobrava desde o velho teto do posto de gasolina, fechando a sala. Ao final da projeção do filme, a tela era recolhida, e o edifício se desmaterializava, fundindo-se com a rua. A construção foi feita por uma centena de voluntários, experimentando e aprendendo juntos. Uma reflexão sobre o que é público, sobre os espaços abandonados da cidade, sobre a importância do processo. O projeto já apontava alguns dos interesses do Assemble e não demorou para chamar a atenção dos especialistas. "Todos gostaram porque fizemos aquilo por prazer", opina Engi-Meacock. "E esse poder do prazer é algo que quisemos manter em nossos trabalhos".

Depois, veio o Folly for a Flyover (loucura para o viaduto), outro projeto efêmero. Um centro cultural debaixo de uma rodovia elevada no bairro de Hackney. Os restos do desenvolvimento urbano moderno convertidos em um amável espaço público. Foi construído juntando peças, como em um jogo, do qual qualquer um poderia participar. Na metade do projeto, decidiram se batizar de Assemble, palavra que em inglês possui dois significados: montar e reunir.

Tinham um nome e um discurso. Poderiam ter aproveitado a inércia para lançar um projeto pop up atrás do outro. Mas, em 2013, o destino do Assemble cruzou-se com um dos habitantes de Granby Four Streets, um conjunto de quatro ruas de casas vitorianas em Toxteth, Liverpool, que haviam investido quase 30 anos de suas vidas em dignificar e proteger o seu bairro.

Em 1981, as ruas de Toxteth foram o cenário de uma violenta revolta popular. Desde então, o bairro foi abandonado. As autoridades locais realocaram os moradores das habitações sociais em outras zonas. As casas foram se esvaziando, as ruas deixaram de ser limpas e sobrou uma espécie de bairro fantasma de 200 casas, com poucas dezenas de habitantes. A ideia era demolir tudo e construir alguma coisa mais barata. Mas o grupo de pessoas que permaneceu no local não estava disposto a permitir que isso acontecesse.

‘Granby Four Streets’, o projeto vencedor do Prêmio Turner.
‘Granby Four Streets’, o projeto vencedor do Prêmio Turner.Assemble

"A maneira como o Governo encara a deterioração urbana tem um toque de arrogância de classe: dizem como você deve viver", explica Michael Simon, sociólogo e um dos moradores resistentes. "Acreditamos que essas abordagens em grande escala não funcionam. Acreditamos nas intervenções pequenas. Por volta de 70% das casas estavam abandonadas, mas a comunidade queria ficar e se envolver na regeneração. A Administração falava em 'deterioração dirigida'. Isso mostra a distância entre o que eles achavam apropriado e o que a comunidade queria".

Em 2010, chegou o Governo de coalizão liderado por David Cameron, com seu empenho para cortar os gastos públicos para reduzir o déficit. A tesoura passou às administrações locais. Liverpool, desde 2010, viu o seu financiamento cair 58%. Os grandes planos urbanísticos foram jogados fora, e Granby Four Streets ficou vazio e sem futuro. "Então, não havia outra alternativa a não ser ouvir nossas ideias", explica Simon. "De repente, tudo era viável".

Os moradores se organizaram. E em 2013, conseguiram o financiamento de uma empresa de investimento social, Steinbeck Studio, que os colocou em contato com o Assemble. "Buscavam um arquiteto para levar o projeto adiante", recorda Engi-Meacock. "E a nossa leitura do que deveria ser feito era muito parecida com a deles. Acreditamos que o processo deveria ser comandado pela comunidade. Os moradores resistiram durante tempo suficiente para que o clima político mudasse e as autoridades percebessem que os desenvolvimentos de limpeza geral dos arredores tinham muitos problemas, porque quebravam as comunidades e as pessoas não se sentiam envolvidas com a cidade".

"Prédios não são ícones ou ações, são espaços que as pessoas usam", diz um dos membros do coletivo

Para mudar as coisas, afirma Engi-Meacock, fazem falta "pequenos atos de rebeldia". "O primeiro que fizeram foi pintar as casas", prossegue. "Estavam cansados de vê-las caindo aos pedaços e as pintaram. As ruas estavam vazias, então colocaram plantas. Tivemos muito cuidado para manter esses atos espontâneos".

Com o Assemble como catalisador, as casas estão sendo restauradas pouco a pouco. Está cheio de gente disposta a se envolver. Em uma segunda fase, está prevista a construção de um jardim de inverno em uma casa em que restam apenas as paredes. Os moradores participam da construção, e em oficinas, recuperam a tradição de um bairro de artesãos no começo do século passado.

Há quem alerte sobre o perigo de que essas iniciativas sirvam de álibi para os Governos se livrarem de suas responsabilidades. Que ocupem o lugar do investimento estatal em nome da Big Society pela qual Cameron advogou. "Sabemos disso", assegura Engi-Meacock. "Afinal, o problema fundamental é que o Governo não está construindo habitações populares. E isso não é a solução. O pior que pode acontecer é que seja utilizado como justificativa da austeridade. Mas temos que ser pragmáticos. Não vamos mudar a narrativa de repente. O que podemos fazer é mostrar maneiras de fazer muito com um investimento relativamente pequeno".

O prêmio Turner dado ao Assemble questiona um modelo de arquitetura que, assim como a arte, parece ter perdido, em algum momento, a capacidade de influenciar as comunidades que mais precisam. "A ideia da casa como ativo econômico faz com que ela perca a sua narrativa arquitetônica", opina Engi-Meacock. "Prédios não são ícones ou ações, são espaços que as pessoas usam".

Centro cultural debaixo de uma rodovia elevada no bairro de Hackney.
Centro cultural debaixo de uma rodovia elevada no bairro de Hackney.Assemble

Os jovens do Assemble não estão sozinhos. Arquitetos do mundo inteiro atuam com consciência social nos vácuos abertos pela crise nas cidades. O próprio quartel-general do coletivo é um exemplo dessa prática: o Sugarhouse Studios foi construído em um terreno em Stratford, no leste de Londres, cedido temporariamente pela Ikea. É um complexo com estúdio, espaço para outros artistas e um local para pequenos eventos.

O desafio é saber se essa corrente que flui pelas margens chegará ao canal central e definirá as cidades. "Não sei", reconhece Engi-Meacock. "Somos jovens e pouco experientes. Estamos explorando ideias, tem sentido fazer isso em pequena escala. Podemos ver o que funciona, o que não funciona, para vermos se dar para replicar em uma escala maior. Não temos um método que poderia ser replicado. Nosso único método é ressaltar a importância de não ter um método. Pensar tudo, conversar, debater. Alguém descreveu nosso escritório como uma conversa constante, e essa é nossa fortaleza. É mutante, baseada em uma série de princípios. Não somos heróis que chegam e arrumam tudo. Somos os que chegam e conversam com as pessoas. Somos facilitadores. Trata-se de trabalhar junto e encontrar furos. E se houver gente o bastante jogando nas margens, quem sabe as coisas podem mudar".

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_