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FOTOGRAFIA

Tirania da imagem

As recordações são mais traiçoeiras que as imagens, mas também mais dinâmicas e interessantes. A febre de fotografar tudo com o celular obedece a algo mais do que a necessidade de registrar nossas vivências. É uma nova linguagem

Javier Sampedro
Soldados fotografam o presidente Obama na Coreia do Sul.
Soldados fotografam o presidente Obama na Coreia do Sul.Reuters

Na semana passada subi ao vulcão espanhol Teide pela primeira vez e tive a sorte do novato. O céu nublado que eu havia deixado lá embaixo era dali de cima um borbotão de nuvens com todas as nuances da luz, uma maré como um catálogo de formas compilado por uma bruxa artista, e entre os contrafortes daquela cordilheira branca pude ver as outras três ilhas ocidentais, esticando a cabeça para respirar um ar mais rarefeito, mais perto da Lua do que da vida cotidiana. Minha primeira reação, como parece natural, foi lançar a mão à pochete e pegar o celular para fotografar aquele espetáculo majestoso. Logo, porém, algo deteve minha mão.

Prestaram atenção na publicidade do iPhone6? Não vende megas nem decibéis: vende pixels, como se o aparelho não fosse um telefone que faz fotos, mas uma câmera que faz ligações telefônicas. O publicitário fez bem. Toda pessoa é um fotógrafo nos dias de hoje. Desde a invenção da fotografia sempre houve uns tantos fotógrafos muito bons, mas sabe-se que não há venenos sem doses. A facilidade com que a tecnologia atual nos permite disparar provocou um pesadelo irritante de imagens anódinas e uma modorra que quase nos faz sentir saudade dos cunhados e suas sessões de fotos ao voltar da praia. Uma overdose que aborrece e não diz nada, que nos reduz a todos ao grau zero das artes plásticas.

Os cunhados, louvado seja Deus, estão em baixa: a maioria das pessoas (55%) já prefere compartilhar fotos em formato digital em vez de mostrar as cópias em papel aos convidados da festa. Além do Facebook, há redes dedicadas exclusivamente a mostrar fotografias, como o Flickr e o raivosamente moderno Instagram: 35% dos usuários de smartphones fazem uma foto dos artigos que vão comprar e as mandam aos amigos para pedir conselho antes de adquiri-los; 63% utilizam apenas o formato digital para as fotos.

Em um estudo, jovens lembravam mais detalhes dos quadros que observavam do que dos que fotografavam

Nem sequer é preciso se preocupar em disparar no melhor momento: a nova minicâmera Narrative Clip faz isso por você, tirando uma foto a cada meio minuto. Segundo os dados da Digital Marketing Stats, o site do Instagram, para guardar e compartilhar fotos, tem 400 milhões de usuários ativos no mês, incluindo 28% da população norte-americana: está arrasando sobretudo entre os menores de 35 anos, e é apenas o mais recente grito desse tipo de site de fotografia, depois do Flickr, PhotoBucket e Picasa.

“O maior número de selfies tomadas em uma hora é de 1.449 e foi alcançado por Patrick Peterson”, informou há pouco tempo um site associado de algum modo ao livro de recordes do Guinness. Há também prêmios para imagens tiradas com o celular, e alguns ganham a mulher do tempo no telejornal. Nós, Homo Sapiens, caímos gradualmente na febre do instantâneo, e só nos restar nos perguntarmos: Quando tudo começou a ir mal?

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E agora: o que deteve minha mão no Teide? Bem, aquele pôr do sol assombroso ia durar somente 10 minutos e, acreditem, pensei que seria melhor aproveitá-los olhando do que fotografando, gravando-o em minha memória e não na do meu telefone. No pouco mais de uma semana que se passou, não me arrependi disso. A memória é mais traiçoeira que a fotografia, mas também mais dinâmica e interessante. É certo que isso mudará algum dia, mas esse dia não chegou.

A psicóloga Linda Henkel, da Universidade de Fairfield, em Connecticut, publicou no ano passado uma pesquisa iluminadora. Aos estudantes que se apresentaram como voluntários – basta lhes oferecer alguns créditos para que apareçam às dezenas – se pediu que fotografassem centenas de quadros de um museu de artes plásticas, e que se limitassem a observar outros. O resultado foi medido no dia seguinte: os estudantes recordavam menos objetos, e menos detalhes de cada objeto, dos quadros que haviam fotografado do que dos que se haviam limitado a observar. O mero fato de fazer uma foto de uma pintura parece, portanto, uma boa receita para se esquecer dela.

Enviar una foto, por exemplo, do Teide a um amigo significa “estou aqui” com um “enquanto te entedias” implícito

“Os resultados”, diz Henkel, “destacam que há diferenças fundamentais entre a memória das pessoas e a memória da câmera”. Curiosamente, esse efeito negativo da fotografia se reverte se, em vez do quadro inteiro, pede-se que fotografem algum detalhe dele. Isso já não pode ser resolvido com o piloto automático –requer concentrar-se na obra e tomar a decisão consciente de quais partes vale a pena–, e a pessoa recorda o objeto da mesma maneira como se o tivesse observado. Não há, pois, nenhum efeito maligno da câmera sobre o cérebro de quem a usa: é o ato de substituir o cérebro pela máquina, delegar a ela o registro das experiências, o que estraga as coisas, como parece lógico, se se observa bem.

Trocar o filme

  • O filme fotográfico, o carretel da vida toda, está sendo resgatado por uma geração de fotógrafos jovens, alguns nascidos quando a imagem digital já era uma realidade inevitável. A ressureição segue os ecos da empreendida por certos amantes da música com o vinil, em vez do mp3.
  • A tendência já tem até dia próprio. O 11 de abril é desde este ano, paradoxo da vida digital, o dia do filme fotográfico. Seus defensores o veem como um sinal de distinção, pois consideram que os celulares, além de democratizar a fotografia, vulgarizaram-na.
  • A primeira imagem virtual data de 1975, quando Steve Sasson, da Kodak, construiu a primeira câmera digital em uma eureca que acabaria sendo uma condenação para a marca.
  • Em 11 de janeiro de 2012, a empresa, acossada pela generalização do uso dos smartphones, declarou falência, anunciou "a reorganização de seu negócio e a apresentação de uma demanda judicial contra a Apple e a HTC por violarem quatro de suas patentes de tratamento de imagens".
  • A empresa ressuscitou em 2013. Hoje conta com 8.000 funcionários em todo o mundo, em comparação com os 145.000 que chegou a empregar nos bons e analógicos tempos. Em 2014, a Kodak perdeu 114 milhões de dólares.

Esses fenômenos de interferência na memória não são tão específicos da fotografia, como se poderia supor, nem no fundo tão novos. Há 30 anos, quando eu era estudante de doutorado, uma parte regular do trabalho era ir à biblioteca buscar as últimas publicações científicas que tratassem do seu tema de estudo. Mas a maioria de nós não ia ali para ler, mas para xerocar os artigos. De alguma maneira, o mero fato de ter uma cópia na sua mesa te eximia da penalidade de lê-lo. Os cientistas de hoje já não têm que ir à biblioteca porque os papers chegam diretamente a seu computador. Mas, deixando à parte a mudança da fotocópia para a impressora, suspeito que continuem fazendo o mesmo.

O experimento pode recordar, mesmo vagamente, uma realidade cotidiana; a enxurrada de mensagens de correio e WhatsApp que nos soterra um minuto após o outro sob camadas de criação alheia e atividade aparente, até quase não nos deixar fazer outra coisa durante todo o dia. De forma análoga às fotos, não significa tampouco que essas mensagens sejam problemas em si mesmas – pelo menos não necessariamente– , mas que nos impedem de nos concentrar em uma leitura contínua, ou substituem a reflexão profunda por um crepitar superficial de ocorrências não solicitadas. A atenção é uma substância valiosa demais para ser desperdiçada dessa forma sem se ganhar nada em troca.

Mas com a fotografia ocorre algo peculiar. Algo que as leituras pendentes não têm. As pessoas, sobretudo o público jovem, a utilizam não como registro gráfico, ou como substituto da memória – mas também –, senão como uma linguagem de comunicação. A foto do Teide (essa que eu não fiz) significa “estou aqui”, com um “enquanto você se entedia” implícito, categórico, e o primeiro plano da cena é um “você se entedia” explícito, que não requer um poeta. E é verdade que há coisas que se dizem mais prontamente com uma imagem do que com uma mensagem, sobretudo se o corretor automático tem um desses dias didáticos.

Esta é uma história da qual é difícil extrair uma moral, mas tentemos produzir uma. Tiramos fotos demais? Não: pensamos pouco demais.

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