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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Tempos tristes

Como assegurar a convivência democrática numa sociedade descrente de si mesma?

A vida cotidiana no Brasil de hoje anda tão áspera, o debate intelectual tão fora da curva, o debate político e econômico tão agressivo, que me sinto frequentemente levado a tentar entender o que está-se passando sob uma perspectiva histórica: explicar o presente como resultado de um passado mal vivido. Será que estamos condenados à violência que se apodera de nossas ruas, à desfaçatez dos argumentos, ao imediatismo de nossas opções políticas, econômicas e institucionais? Esse foi em boa medida o nosso passado. Será também o nosso futuro?

Ao ler muitos anos atrás o clássico Tristes Trópicos de Claude Lévy-Strauss, antropólogo francês que veio ao Brasil em missão nos anos 30, sublinhei uma passagem que sempre me intrigou. Traduzido livremente do francês, Lévy-Strauss diz haver escutado de um observador malicioso que a América passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. E continua, talvez impressionado pelo crescimento caótico da cidade de São Paulo, afirmando que a fórmula, com mais justiça, poderia ser aplicada às cidades do Novo Mundo, pois vão do frescor à decrepitude sem passar pela antiguidade.

Será esse mesmo o nosso destino? perguntei-me ao longo da vida a cada momento difícil por que passamos no Brasil. E pergunto-me agora que atravessamos uma crise profunda. Estaremos em vias de passar à estagnação e à decrepitude, sem jamais conhecer um apogeu? Onde está o Brasil imaginado, o que tinha um futuro de grandeza e prosperidade, em que a convivência seria cada vez mais cordial?

Todas as sociedades, mesmo as mais antigas e avançadas, têm seus contrastes e seus antagonismos. Na cultura ocidental, nascida na Grécia antiga, renascida ao final da chamada Idade Média e consolidada com as Revoluções Americana e Francesa, a democracia tornou-se um valor absoluto. Fórmulas foram tentadas ao longo da história e ainda hoje para amenizar os contrastes e controlar os antagonismos mediante regimes de força, autoritários e ditaduras do proletariado ou das classes dominantes. Nada deu certo ao longo do tempo. A democracia é, e deverá continuar a ser, o padrão pelo qual se mede a qualidade da vida institucional dos países.

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O Brasil, como de resto a maioria dos países conhecidos eufemisticamente como “em desenvolvimento”, não conheceu a democracia liberal a não ser episodicamente. Tivemos 308 anos de regime colonial, 22 anos de presença da Corte Real no Rio de Janeiro e 67 anos de Monarquia. Ao todo 397 anos se passaram antes da Proclamação da República. Praticamente 4 séculos. Hoje, 193 anos depois, apesar de muitos progressos e do estabelecimento da democracia formal, ainda estamos longe de emular o nível das democracias estabelecidas nos países desenvolvidos.

Progredimos, eliminamos barreiras, ampliamos a inclusão social. Mas falta muito ainda. As populações marginais nas favelas urbanas, nas caatingas nordestinas, a falta de educação e de saúde, demonstram a insuficiência de nossos esforços.

Sem falar na corrupção, que nos acompanha desde sempre. Martim Afonso de Souza, o grande personagem das navegações e da exploração colonial do Brasil (1530-1533) dizia: “Quem diz que sou cobiçoso, diz a maior verdade do mundo, que eu cobiço dinheiro porque não o tenho e porque não posso servir-vos, nem ser honrado sem ele...” Quinhentos e tantos anos depois ainda somos obrigados a conviver com um tipo de ambição corrupta por parte de muitos de nossos homens públicos. A sociedade não pode aceitar isso como se fosse inevitável. Não é! O conformismo agrava nossos problemas, que já não são poucos.

Reina no Brasil de hoje um profundo cinismo. Para que servem os valores? Para que serve a justiça? Como promover o bem comum?

Hoje achamo-nos completamente desorientados. Discutem-se cargos quando deveriamos estar discutindo programas de Governo. As lideranças calam sobre visões de futuro. Colocam-se esparadrapos sobre as feridas profundas que dilaceram o corpo da nação. Concentramo-nos no curto prazo, deixando-se o médio e longo prazo continuamente postergados. O crime toma conta das ruas e dos gabinetes. Nas ruas, roubam-se valores e assassinam-se pessoas. Nos gabinetes, valores ainda mais expressivos são roubados e valores morais são assassinados. Os ladrões nas ruas são algumas vezes apanhados e, mal tratados, persistem no crime. Os ladrões nos gabinetes, quando apanhados, são bem tratados e suas famílias continuam a usufruir do que foi roubado.

Reina no Brasil de hoje um profundo cinismo. Para que servem os valores? Para que serve a justiça? Como promover o bem comum? Ainda prevalece a injustiça, a impunidade, a truculência. Como assegurar a convivência democrática numa sociedade descrente de si mesma?

Tomado por essas inquietações, reabri um livro importante, que marcou muito meu pensamento quando o li no final dos anos 70. Trata-se de obra da historiadora americana Barbara Tuchman. Chama-se The March of Folly (A Marcha da Insensatez). A senhora Tuchman analisa diversos episódios internacionais, a começar pelo mítico cavalo de Tróia e, passando pela secessão do protestantismo, a perda da América pelos britânicos, termina com a guerra do Vietnã. Mostra como, através da história, Governos tomaram conscientemente decisões contrárias a seus próprios interesses e persistiram nelas contra todas as evidências. E tenta entender por que líderes políticos frequentemente agem em sentido contrário aos ditames da razão e do próprio auto-interesse.

Erros são inerentes à natureza humana. Todos os cometemos. O que é estranho é persistir no erro mesmo sabendo que estamos errados. Quem se acha convencido da excelência de suas políticas frequentemente não se deixa abalar, por mais evidentes que sejam os sinais do fracasso. Persiste no erro. O poder, além de corromper, conduz à insensatez. E a responsabilidade do poder se dilui à medida que seu exercício se prolonga. Os exemplos e as experiências do passado estão aí. Replicam-se no Brasil de hoje com crescente licenciosidade.

Não terá chegado o momento de verdadeiramente transformar esse destino trágico que nos acompanha desde o Descobrimento? Nada mais eloquente do que o último parágrafo da Carta de Caminha ao Rei de Portugal. Depois de descrever as maravilhas do país, Caminha pede ao monarca a transferência e um emprego para seu genro Jorge da Cruz, então em São Tomé. Em se plantando tudo dá, e em se pedindo, tudo vem!

Norberto Bobbio, no seu livro sobre o envelhecimento, De Senectute, conta que, ao ouvir um palestrante fazer determinado contraste entre o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade, levantou-se e declarou para quem quisesse ouvir que o pessimismo de sua inteligência sempre foi acompanhado por certo pessimismo da vontade. O Brasil é essencialmente plural, unido por valores reais e imaginários. Fomos capazes de construir a duras penas um processo institucional democrático. Não sucumbimos ao pessimismo da vontade. Mas ainda não conseguimos - apesar de todos os progressos - estabelecer a coesão social desejada e conter a corrupção. Espero que não estejamos condenados ao fracasso, a tomar indefinidamente as decisões erradas, sabendo que são erradas!

São tempos tristes. Mas nossa democracia e nossa visão de um futuro melhor para o país não podem ser abaladas pela corrupção e pelo conchavo político. É tempo de tomar as decisões certas e não persistir no erro!

Luis Felipe de Seixas Corrêa é diplomata, chefiou a missão do Brasil na ONU e na OMC. Foi por duas vezes secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (1992 e 1999-2001).

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