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Coluna
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O Brasil também são crianças pobres que trocam gelinho por poesia

Alunos das escolas mais pobres do interior sonham com um futuro melhor que o de seus pais, que não puderam estudar

Juan Arias

O Brasil não é só recessão econômica, crise e frustração. Os meninos que vão à escola não são só os filhos mimados de pais ricos ou de políticos corruptos, que existem de sobra. Na ampla e rica geografia deste país, existem, por exemplo, infinitas experiências de escolas públicas perdidas no interior que, uma vez descobertas, ressuscitam um fio de esperança. Escolas pobres de recursos, mas ricas de criatividade e entusiasmo.

Quis trazer para a minha coluna uma dessas experiências porque contrasta positivamente com a indignação que hoje percorre o país de ponta a ponta, que vê ir embora milhares de milhões de dinheiro, escorrendo pelos bueiros sujos da ilegalidade.

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Contra isso, como um antídoto cultural, um punhado de crianças se engenha, por exemplo, para comprar livros para a pequena biblioteca de sua escola vendendo gelinhos na rua.

A protagonista é a escola E. M. Joaquina de Oliveira Rangel, em Águas de Juturnaíba, no Estado do Rio. Fica localizada no meio da natureza e tem a sorte de desfrutar de tempo integral, ainda um sonho para a maioria das escolas públicas brasileiras. Sua diretora e professores, em vez de se perderam nas frias burocracias escolares, revelam espírito criativo que permite aos alunos liberdades inocentes, mas de grande impacto terapêutico e pedagógico, como deixar levar para a escola seus cachorros, que esperam pacientemente seus pequenos amos para voltar para casa. Ou cuidar de uma gata que chegou lá perdida e teve uma cria. Recebeu o nome de Joaquina, como a escola. Tudo isso condimentado com uma forte dose de poesia.

Em uma manhã, o dono da livraria de Araruama, na Região dos Lagos, município onde fica a escola, se surpreendeu ao ver entrar um grupo de crianças com duas bolsas cheias de moedas para comprar livros de poemas. Curioso, quis saber onde tinham recolhido tantas moedas. Explicaram que na escola deles a diretoria havia decidido trabalhar com livros de uma poetisa que leva em seus escritos o conceito dos valores, algo cada vez mais esquecido em nossa sociedade de consumo.

Como não tinham dinheiro para comprar os livros que tinham escolhido, os alunos decidiram vender gelinhos, produzidos com a ajuda de suas mães e professores. A história chegou por acaso aos ouvidos da autora escolhida, que se ofereceu para visitar a escola. Chegou ao lugar por estradas de terra.

Na pequena escola rural encontrou um cenário de fantasia e criatividade, com poemas pendurados em um castanheiro e casas construídas com papelão com alusões a títulos de obras poéticas. Suspenso em um flamboyant, um alfabeto de madeira e papelão que mostrava em cada letra uma palavra evocando um valor como honra, solidariedade, fidelidade, amizade, etc. Em uma acácia estavam presos trabalhos coloridos dos alunos.

As crianças encheram de livros até um velho carrinho de pipoca que encontraram abandonado e elas mesmo reconstruíram.

Parece simples demais e insignificante a história desses meninos vendendo gelinho para comprar com as moedas livros de poesia? Ou dessa escola rural que ainda tem a ousadia de trabalhar com aqueles meninos pobres, cujas casas de alguns ainda não têm luz, o conceito de valores, uma moeda hoje esquecida e depreciada pelos que só sabem se afirmar e crescer na vida às custas de pisoteá-los?

Eu tenho uma dívida moral e afetiva com todos os professores e professoras, já que meus pais o foram em aldeias também rurais em tempos difíceis de guerra e fome. E eu estudei em suas escolas. Estou certo, por isso, que a raiz do saber e da cultura, cuja etimologia evoca o cultivo da terra, reside fundamentalmente na escola primária, da qual se sai ou forjado para a vida ou destinado ao fracasso.

Tudo grande e de valor costuma surgir de gestos pequenos, e até invisíveis

Se hoje a sociedade brasileira aplaude e confia em um punhado de juízes valentes que lutam contra a impunidade da corrupção, não menos deveria aplaudir esses professores que vivem no anonimato, tantas vezes sem reconhecimento nem sequer econômico, mas que se esforçam para que de suas escolas saiam pessoas com valores e criatividade, capazes de serem fermento em uma sociedade que perdeu o tremor da esperança.

Tudo grande e de valor costuma surgir de gestos pequenos, e até invisíveis. As parábolas evangélicas, que não perderam sua força através dos séculos, ressaltam a força do pequeno, como da insignificante semente de mostarda que, quando plantada, floresce cheia de vida.

Se basta um sorriso para devolver a uma pessoa sua confiança perdida, ou uma mão amorosa sobre o ombro do amigo que sofre para aliviar sua dor, também basta, às vezes, para transformar um país, o gesto criativo e generoso de uma professora dedicada ou de uma escola perdida no interior que não abre mão de preparar as crianças para encarar a vida com esperança.

Meus aplausos à escola Joaquina e a seu amor pela poesia, um ingrediente hoje ausente na fria prosa da nossa peçonhenta vida política.

Há anos, o grande escritor italiano Leonardo Sciascia, ele também um professor rural, que se tornou a voz crítica de sua sociedade, sacudida à época, como hoje o Brasil, pela corrupção política, me disse, dolorido, que a Sicília, sua terra natal, “não era só máfia”.

Hoje também podemos dizer, com justiça, que o Brasil “não é só corrupção”. É também esse arco-íris de pequenas histórias de escolas e professores, perdidos no anonimato, mas que são o fermento de pão da esperança para os pequenos que ainda estão começando a vida. Eles precisam sonhar com essa vida melhor que a de seus pais, que, muitas vezes, nem puderam ir à escola.

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