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Coluna
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Entre fogos

Nós, desamparados por um Estado ineficaz, padecemos no meio do tiroteio, agradecendo cada dia que sobrevivemos à violência que bate à porta

O dia 15 de maio de 2006 parecia uma segunda-feira qualquer. Minha filha estava para completar 13 anos e cursava a sétima série do ensino fundamental. Havia uma tensão no ar devido aos recentes confrontos entre a polícia e o PCC, facção criminosa que dominava, e ainda domina, os presídios do estado de São Paulo. O governo insistia que tudo encontrava-se sob controle, mas em um determinado momento o pânico tomou conta da cidade —e uma das maiores megalópoles do mundo parou. Completamente.

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Ninguém até hoje conseguiu explicar de onde partiram os boatos de que naquela data haveria atentados patrocinados pelo PCC contra alvos civis. No começo da tarde, o pavor tinha se alastrado: as empresas dispensaram os funcionários e multidões tentavam voltar para casa o mais rápido possível. O noticiário relatava ameaças de bomba no metrô, em shoppings, nos aeroportos. O trânsito entrou em colapso —o congestionamento alcançou 195 quilômetros em um horário incomum, entre as 15 e 18 horas.

Liguei para o colégio, onde minha filha estudava, e a direção ponderou que o melhor seria mantê-la na segurança do prédio do que aventurar-nos pelas ruas de uma cidade conflagrada. Concordei com o argumento, contrariando quase todos os pais e mães que, aterrorizados, enfrentaram a insânia do tráfego disputando o asfalto palmo a palmo com os outros motoristas. Apenas após as coisas se tranquilizarem, por volta das 18 horas, fui buscá-la. Retornamos para casa em silêncio, observando a cidade vazia, acuada pelo medo, atordoada pela impotência.

Agora, nove anos depois, o jornal O Estado de S. Paulo confirma uma suspeita, levantada pela Folha de S. Paulo à época, de que o clima de terror somente foi encerrado por conta de um acordo com o principal líder do PCC, Marcos Willian Herbas Camacho, o Marcola, patrocinado pelo então governador Claudio Lembo. Lembo estava à frente da administração do estado há apenas 45 dias, substituindo Geraldo Alckmin, que renunciara ao cargo para concorrer à Presidência da República pelo PSDB.

Os policiais alimentados pelo preconceito, escudados pelo autoritarismo e contaminados pela corrupção, caminham na corda bamba da ilegalidade

A onda de ataques do PCC começara no dia 12, sexta-feira, com rebeliões simultâneas em 73 presídios e nove cadeias públicas, incêndios de ônibus, atentados contra delegacias de polícia, seguranças privados e agências bancárias. No domingo, 14, em que se comemorava o Dia das Mães, dois representantes da alta cúpula do governo do estado voaram até Presidente Bernardes para encontrar Marcola, preso na penitenciária daquela cidade. Na segunda-feira, 15, São Paulo parou —na terça-feira, 16, o motim havia acabado.

Não está claro até hoje o que o governo estadual ofereceu ao PCC em troca do fim dos ataques. Mas ficou evidente o que motivou a rebelião. Em 2011, a ONG Justiça Global, em parceria com a insuspeita Clínica Internacional de Direitos Humanos da universidade de Harvard, divulgou um contundente relatório de 251 páginas que apontava como causa principal da revolta dos bandidos a corrupção policial.

Foram tempos de terror. O Laboratório de Análises de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro arrolou 564 assassinatos em São Paulo entre os dias 12 e 21 de maio daquele ano —59 policiais e 505 civis. Segundo o estudo, enquanto a maioria dos assassinatos de agentes públicos ocorreu entre os dias 12 e 13, a maior parte das mortes de civis aconteceu entre os dias 14 e 17, reforçando a hipótese de vingança: para cada policial morto, dez civis foram assassinados.

Os bandidos, cativados pela ilusão do dinheiro fácil e certos da impunidade, ampliam seus tentáculos dentro da sociedade

Deste fato, que já faz parte da História, permanece uma certeza: a de que a situação se deteriorou bastante de lá para cá. Os policiais, com honrosas exceções, alimentados pelo preconceito, escudados pelo autoritarismo e contaminados pela corrupção, caminham na corda bamba da ilegalidade. E os bandidos, cativados pela ilusão do dinheiro fácil e certos da impunidade (de que têm exemplos nos altos escalões do poder institucional), ampliam seus tentáculos dentro da sociedade. E nós, desamparados desde sempre por um Estado ineficaz, padecemos no meio do tiroteio, agradecendo cada dia que sobrevivemos à violência que bate à porta, e que já nos levou vizinhos, parentes, amigos.

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