O Brasil nu
Existem dois Brasis. O primeiro, habitado por um povo ordeiro e pacífico. O outro, que tem cada vez mais revelado a sua genuína face: um território tomado pela intolerância
Existem dois Brasis. O primeiro, habitado por um povo ordeiro e pacífico, rodeado de paisagens paradisíacas, onde convivem harmonicamente todas as etnias, todos os gêneros e todas as classes sociais, lugar de realização de sonhos e desejos – este é o país idealizado que exportamos e que alimenta o imaginário dos estrangeiros. O outro, esse no qual sobrevivemos, tem cada vez mais revelado a sua genuína face: um território tomado pela erva daninha da intolerância, pelo veneno do cinismo, pelo câncer da corrupção. Nos últimos dias, assistimos atordoados diversas manifestações do lado obscuro do nosso caráter, que põem a nu nossa verdadeira essência.
O BRASIL MACHISTA – Aprovemos ou não a administração da presidente Dilma Rousseff, é inquestionável que ela foi eleita pela maioria dos votos no último pleito e que encontra-se no momento investida do mais importante cargo político do país. As críticas a ela, justas ou injustas, podem e devem ser feitas, mas respeitando-a como autoridade e ser humano. A imagem de Dilma Rousseff com as pernas abertas, disseminada nas redes sociais, não significa apenas desacato, mas pelo mau gosto também ofende-a como mulher. Demonstrações assim me fazem pensar no que faria gente dessa estirpe se estivesse no poder.
O BRASIL RACISTA – Reflexão semelhante me ocorre ao ler, estarrecido, as ofensas à jornalista Maria Julia Coutinho, responsável pela apresentação da meteorologia no Jornal Nacional. Bastou uma afrodescendente ocupar um lugar de destaque no horário nobre da televisão para despertar o ódio de uma parte da população, que mantém, pasmem!, em pleno século XXI, uma mentalidade segregacionista escravocrata.
O BRASIL CÍNICO – A presidente Dilma Rousseff já começa a demonstrar preocupação com o que chama de “clima de impeachment” que impregna o Congresso. O PT, ao invés de condenar a prática de corrupção que grassa entre seus dirigentes, prefere ora questionar a isenção da Justiça, ora argumentar que é impossível fazer política sem recorrer a financiamento via caixa 2. O PMDB torce, disfarçadamente, para que Dilma seja apeada do comando – caso isso ocorra, assume o vice, Michel Temer, e ganham espaço na República os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara, Eduardo Cunha... O PSDB, que nunca se conformou com a derrota do senador Aécio Neves nas últimas eleições, mal consegue ocultar o contentamento pelo agravamento da crise. A todos interessa apenas a conquista do poder. A nenhum, o que nos aguarda no futuro.
O BRASIL AUTORITÁRIO – O presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, que se arvora em zelador da moral do homem comum, não demonstra pejo em deixar aflorar seu lado autoritário. Defensor dogmático da redução da maioridade penal, perpetrou um golpe contra a legalidade ao impor a votação do projeto que diminui de 18 para 16 anos a idade para encarceramento de adolescentes que cometam crimes graves, um dia após proposta semelhante ter sido rejeitada. Em recente entrevista a El Pais, o escritor Ferréz, um dos fundadores da autodenominada literatura marginal, disse que tinha dúvida sobre o que era pior para os jovens das periferias, se os traficantes de drogas ou os evangélicos. Traficantes e evangélicos multiplicam-se onde está ausente o Estado. A cruzada de Eduardo Cunha, fiel da igreja neopentecostal Sara Nossa Terra, parece-se mais uma luta por hegemonia entre os destituídos de tudo.
Paraty é um município litorâneo com cerca de 36 mil moradores. No mês de julho sedia a Flip, um festival literário que faz desfilar, em quatro dias de programação, algo em torno de 25 mil pessoas pelas ruas de seu centro histórico. Fora desse núcleo de lindo casario do começo do século XIX, ergue-se a segunda cidade mais violenta do Estado do Rio de Janeiro, disputada palmo a palmo pelas facções criminosas do Comando Vermelho e do Terceiro Comando. Grossas correntes separam a Paraty cenográfica da Paraty miserável. Uma não conversa com a outra. Uma ignora a outra. Paraty simboliza tragicamente o Brasil, como naquela música de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, cantada por Elis Regina: o Brazil não conhece o Brasil. Resta saber qual Brasil, no final, vai se sobrepor ao outro.
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