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Coluna
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O Brasil é para poucos

Dependendo de onde nos situamos no espectro social podemos usufruir do que o Brasil oferece de melhor ou de pior do mundo

Moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em abril deste ano.
Moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em abril deste ano.Fernando Frazão (Fotos Públicas/Agência Brasil)

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou um termo, Belíndia, que buscava sintetizar as contradições do Brasil: segundo ele, tínhamos uma Bélgica incrustrada em uma Índia. A palavra, popular nos anos 1980, a nossa década perdida, caiu em desuso, inclusive porque não faz muito sentido —a Índia, um país de 1,3 bilhão de pessoas, possui um sistema milenar de castas sociais justificado por princípios religiosos, que gera marajás e miseráveis. Mas se o conceito não tem fundamento não é porque mudou o cenário: continuamos a ter uma das maiores concentrações de renda do planeta —10% da população detêm 42% do total das riquezas do país.

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De acordo com a Constituição de 1988, o salário mínimo deve suprir as necessidades básicas (alimentação, moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social) do trabalhador e de sua família. Atualmente, esse valor equivale a R$ 788,00 mensais (cerca de 260 dólares). Segundo levantamento do Banco Central, 28% dos trabalhadores recebem um salário mínimo por mês, e 54%, de um a três (até R$ 2.364,00 ou 790 dólares). Menos de 1% da população ganha mais de 20 salários mínimos mensais (R$ 15.760,00 ou 5.300 dólares). As mulheres brancas, em qualquer camada social, ganham, em média, 30% menos que os homens para exercer as mesmas funções. Um homem negro recebe 57% da média paga a um branco —e uma mulher negra, menos da metade.

Continuamos a ter uma das maiores concentrações de renda do planeta: 10% da população detêm 42% do total das riquezas do país

Lideramos o ranking de cirurgias plásticas por razões estéticas: 1,5 milhão de intervenções em 2013, o que equivale a 12% do total mundial. Além disso, alguns de nossos hospitais destacam-se como referência em especialidades como cirurgia cardíaca, transplantes, tratamentos de câncer e de aids, por exemplo. No entanto, o sistema público de saúde é caótico: leva-se meses para agendar uma consulta, outros tantos para a realização de exames laboratoriais, mais alguns para marcar uma operação. Morremos ou de problemas típicos de países ricos —doenças circulatórias e respiratórias, câncer, diabetes— ou de países miseráveis —aids, cólera, hanseníase, hepatite, sarampo, malária. A tuberculose, doença social por excelência, que atinge particularmente pessoas pobres, registra 70.000 novos casos por ano e 5.000 óbitos. E em 2015 foram notificados 750.000 casos de dengue no país, com o registro de 229 mortes, sendo 169 apenas no estado de São Paulo, o mais rico do Brasil.

A USP, listada entre as 100 melhores instituições de ensino superior do mundo, é uma universidade pública e gratuita, quer dizer, mantida por impostos pagos por ricos e pobres. Mas ali até hoje não vigora um sistema de cotas, e sim um programa alternativo, e restritivo, de inclusão social e racial, por meio de bônus. O ingresso naquela universidade dá-se por meio de um dos vestibulares mais concorridos do Brasil e o acesso à maioria de seus cursos restringe-se a alunos que estudaram nas melhores escolas privadas. A USP mantém-se como reduto exclusivo da elite paulistana. Enquanto isso, segundo a Universitas 21, o Brasil ocupa o 38º lugar no ranking que avalia a qualidade do ensino superior em 50 países. O gasto por estudante brasileiro é de 3.000 dólares anuais —contra a média mundial de 9.500 dólares e muito distante dos primeiros lugares, Suíça (US$ 16.000 dólares) e Estados Unidos (15.000 dólares).

Morremos ou de problemas típicos de países ricos —doenças circulatórias e respiratórias, câncer, diabetes— ou de países miseráveis —aids, cólera, hanseníase, hepatite, sarampo, malária

Embora não haja dados precisos, estima-se que apenas 46.000 pessoas sejam donas da metade das propriedades rurais do país. Enquanto isso, segundo dados do Incra, 4,8 milhões de famílias permanecem sem terra para trabalhar. Dos 400 milhões de hectares titulados, somente 60 milhões (15% do total) são utilizados, e, conforme o IBGE, os pequenos proprietários, donos de áreas com menos de 100 hectares, são responsáveis por 80% da produção de alimentos e 80% da contratação de mão de obra. Noventa mil famílias vivem acampadas em precárias condições ao longo das rodovias e o Brasil lidera o ranking de violência rural: segundo a Ong Global Witness, em 2014 foram assassinados 29 militantes da reforma agrária, sendo quatro deles lideranças indígenas.

Estima-se que apenas 46.000 pessoas sejam donas da metade das propriedades rurais do país. Enquanto isso, segundo dados do Incra, 4,8 milhões de famílias permanecem sem terra para trabalhar

Dependendo de onde nos situamos no espectro social podemos usufruir do que o Brasil oferece de melhor ou de pior do mundo, porque aqui, no mesmo espaço, convivem tempos civilizacionais inteiramente diferentes. A complexidade do nosso país é tão grande quanto a extensão de suas terras —atribuem a Tom Jobim a frase que talvez melhor resume a dificuldade de compreendê-lo (ou de nos compreendermos dentro dele): O Brasil não é para principiantes. Não é mesmo, porque, ao contrário do que apregoava lema governamental recente, o Brasil não é de todos, é de poucos.

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