_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

O nosso fundamentalismo

Perturbador não é o fato de o deputado Eduardo Cunha cultivar e encampar ideias reacionárias. Perturbador é constatar que Cunha não está sozinho nesta empreitada

O presidente da Câmara, Eduardo Cunha.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Fabio Rodrigues Pozzebom (Agência Brasil)

No dia 1º de fevereiro Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi eleito presidente da Câmara dos Deputados, o que o coloca como segundo nome na linha de sucessão da Presidência da República em caso de ausência de Dilma Rousseff, logo após o vice-presidente, Michel Temer (PMDB-SP). O Brasil encontrava-se em plena função pré-carnavalesca, enquanto Cunha, articulador e líder do chamado Blocão, que reúne metade dos parlamentares da Casa, trabalhava para trazer à pauta propostas que considera essenciais para o bom funcionamento da sociedade brasileira.

Dentre as prioridades de Cunha estão a votação do Estatuto da Família, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), fiel da Assembleia de Deus, que define “família” como “união entre homem e mulher”, contrariando decisão do Supremo Tribunal Federal, que igualou os direitos dos casais homossexuais aos dos casais heterossexuais. Cunha também desarquivou dois projetos de sua autoria, um que institui o Dia do Orgulho Heterossexual e outro que penaliza a discriminação contra os heterossexuais. Fosse brincadeira, pensaria em farsa – mas, sendo sério, enxergo apenas cinismo.

Nunca soube de nenhum heterossexual discriminado, onde quer que seja, por conta de sua orientação sexual – mas em 2013 foram assassinados 319 homossexuais, quase um por dia

Negar direitos aos casais homossexuais, em nome da defesa de valores familiares, é acreditar ainda que o sol gira em torno da Terra ou que as moscas nascem da carne em putrefação. A ideia tradicional de família está em crise em todos os lugares, é uma marca dos nossos tempos – e, ao invés de propor uma discussão honesta sobre como organizar essa nova realidade, preferimos inventar culpados e caçá-los. Incompetentes para nos adaptar a um mundo em mutação, aferramo-nos a um passado idealizado (e portanto falso) e negamos o presente concreto. Esse discurso, baseado em um moralismo fundamentalista, não combina com uma sociedade que se quer moderna e laica, e resulta numa espécie de autismo social. Nunca soube de nenhum heterossexual discriminado, onde quer que seja, por conta de sua orientação sexual – mas em 2013 foram assassinados 319 homossexuais, quase um por dia.

Mais informações
Congresso Nacional se enche de representantes ultraconservadores
Eduardo Cunha: “Não fizemos acordo eterno com o PT”
Silêncio diante do drama do aborto clandestino
Câmara de Eduardo Cunha dá fôlego para pautas conservadoras
Leia outros artigos de Luiz Ruffato
A magia oculta de Eduardo Cunha

Outra cruzada de Cunha, dentro de sua lógica de preservação da família, é contra a legalização do aborto. Por sua iniciativa, tramitam na Câmara dos Deputados quatro projetos de lei que ampliam a repressão à prática do aborto: tipificando-a como crime hediondo, conceituando o início da vida na concepção (hoje a legislação compreende que a vida começa após a 22ª semana de gestação), prevendo a prisão de seis a vinte anos do médico que pratique a operação, e tornando crime a orientação de gestantes para o procedimento, com até dez anos de reclusão.

A proibição do aborto é mais uma face visível da nossa hipocrisia. Todos sabem que o aborto é praticado no Brasil, e de maneira intensiva – calcula-se em torno de 850 mil procedimentos clandestinos todo ano. A diferença é que as mulheres ricas de classe média vão a clínicas de alto padrão, com ameaça mínima para a saúde, enquanto as mulheres pobres recorrem a consultórios de fundo de quintal, a aborteiras ou lançam mão de expedientes domésticos, correndo sérios riscos, que resultam muitas vezes em esterilidade e, pior, em morte. Recusar-se a discutir o assunto é continuar condenando as mulheres, sejam ricas ou pobres, à marginalidade – e, em casos extremos, à morte.

Negar direitos aos casais homossexuais, em nome da defesa de valores familiares, é acreditar ainda que o sol gira em torno da Terra

Perturbador não é o fato de o deputado Eduardo Cunha cultivar e encampar ideias reacionárias – que ele tem todo o direito de defender. Perturbador é constatar que Cunha não está sozinho nesta empreitada. Economista, 57 anos, começou sua trajetória pública como presidente da Telerj, no governo Collor, assumindo em seguida a presidência da companhia de habitação do Rio de Janeiro, no governo Garotinho. Radialista, ligado ao bispo Robson Rodovalho, da igreja Sara Nossa Terra, elegeu-se em 1998 deputado estadual e a partir de 2002 deputado federal, com votações crescentes a cada nova legislatura – na última, foram 232 mil votos. Para conquistar a presidência da Câmara, no primeiro turno, recebeu 267 votos. Perturbador é isso: o deputado representa a opinião de uma parcela cada vez maior da população brasileira, que, renunciando a pensar, delega suas opiniões a homens como Eduardo Cunha, que, escudado num falacioso discurso religioso, defende sabe-se lá que interesses.

Luiz Ruffato é escritor e jornalista.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_