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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Dizem que os cães veem coisas

Um diálogo entre o Meia Noite, um vira-lata todo preto de um casal sem-teto, e o Pirata, um jovem cão recém-adotado

Para B. e F., que entendem o que digo.

Meia-noite é um vira-lata todo preto que vive – ia dizer mora, mas não, ele não tem casa – que sobrevive, então, na esquina da quadra, ao relento, com um casal sem-teto que, aproveitando o movimento de um grande escritório de advocacia, assenhorou-se do pedaço da rua como flanelinhas. Às vezes, Meia-noite fica preso por uma coleira; na maior parte do tempo, no entanto, encontra-se solto, andando de um lado a outro. Às vezes come, às vezes toma banho, às vezes recebe carinho. Por conta dessa existência precária, tornou-se filósofo. Mas filósofo indagativo, reflexivo – desconhecedor de certezas, portanto.

Há cerca de duas semanas Meia-noite ganhou um companheiro, Pirata, um jovem cão que, não fosse adotado pelo casal sem-teto, talvez minguasse pelas veias e artérias da cidade, chafurdando em sacos de lixo, correndo de pontapés, esquivando de para-choques e rodas de carros, hostilizado pelos humanos e pelos colegas de desgraça. Agora, ainda que frágil, percebe-se afortunado membro de uma família. Como bom preceptor, Meia-noite assumiu o dever de instruir o novo amigo. Pela manhã, pouco antes de o sol nascer, expõe suas dúvidas a Pirata, enquanto vela o sono intranquilo de seus donos.

Disso tudo soube ontem, quando, fustigado por uma terrível insônia, resolvi caminhar pelo bairro. Logo ao quebrar a esquina ouvi murmúrios sob uma tipuana. Primeiro, pensei fossem barulhos aleatórios, o vento roçando as folhas das árvores, por exemplo. Depois, imaginei tratar-se do ressonar do casal sem teto, que dormia esticado em caixas de papelão, ladeado por um carrinho de supermercado cheio de pertences. Mas, em seguida, maravilhado, atinei que os sussurros provinham daquele vira-lata preto, que contemplando a agonia da madrugada dirigia-se ao jovem cão malhado, atento, mas dispersivo – coçava-se, mordia-se, levantava-se, sentava-se, deitava-se –, atolado em sua vulcânica mocidade. Eis o que conversavam:

PIRATA: ... então, por que a gente passa fome, não tem um teto?

MEIA-NOITE: Também não compreendo, Pirata. Há cães que moram em casas imensas, alimentam-se de nutritivas refeições, possuem empregados para passeá-los, frequentam clínicas onde são lavados, escovados, perfumados, vistoriados. Se adoecem, levam-nos ao veterinário. Se necessitam, educam-nos com adestradores. Recebem, ao longo da existência, afeto. Ao morrer, pranteiam-nos os donos, fixando seus nomes e façanhas na crônica familiar. Apreciados, invejados, admirados, a esses poucos favorecidos os humanos denominam raça pura, como não descendêssemos todos do mesmo cão original...

PIRATA: Foi sempre assim, Meia-noite?

MEIA-NOITE: Não creio, meu bom amigo, não creio. No princípio dos tempos, quando homem e cachorro formávamos uma só nação, todos dependíamos uns dos outros para perdurar como espécie. Mas à medida que alguns, pela força, pela violência, foram acumulando riquezas, nos dispersamos. Como apêndice da dos homens, a nossa história passou a ser a narrativa de desencontros, desentendimentos, divergências...

PIRATA: Como assim?

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MEIA-NOITE: Embora tenhamos nossas próprias convicções, a convivência nos empurra para espelharmos as características dos nossos donos. Há cães dóceis e amargos, felizes e furiosos, altruístas e egoístas, amigáveis e antipáticos, tolerantes e discriminatórios, mansos e violentos, bons e maus, enfim. Mas todos esses adjetivos devem ser apostos aos humanos – nós não distinguimos os nossos semelhantes pela pelagem, o ganido, o tipo de coleira, as roupas com que se cobrem, os acessórios que possuem. Para nós, um cão é um cão. O preconceito, que infelizmente também adotamos, desaparece no momento em que nos deixam a sós, entregues aos nossos cheiros, pois no outro reconhecemos de imediato o ancestral comum e revivemos aquele sentimento de paz e alegria de quando nos achamos em equilíbrio com o universo.

PIRATA: Ah, então isso é que é felicidade?

MEIA-NOITE: Não sei se é isso a felicidade... Mas talvez a sensação mais próxima à felicidade seja os instantes, poucos e raros, em que, cientes da nossa desimportância individual, nos irmanamos com os seres e coisas existentes. Precisamos de quase nada para subsistir, Pirata, um prato de comida, um pote de água, um lugar para deitar o corpo cansado... Mas viver não é subsistir: apenas uma vez ocupamos esse corpo e temos o dever de, dia após dia, contribuir para tornar o espaço que nos cerca mais harmônico.

PIRATA: E como a gente consegue, Meia-noite?

O cão filósofo suspirou. A manhã despertara com o trinar dos pássaros, o ronco dos motores dos primeiros automóveis. O casal sem teto espreguiçava. Só então os dois cães repararam em mim, estático. Cruzei devagar a rua rumo à calçada oposta, lento o suficiente para ainda escutar Meia-noite concluir: “Persiga o amor, Pirata, persiga o amor”.

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