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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

O desaparecimento do meu tio

Estima-se que entre 40 e 50 mil pessoas desaparecem por ano no Brasil. Do total, 80% retornam às suas casas, mas o restante nunca mais são encontradas

Quando eu tinha uns 12 anos, tio Arlindo, único irmão do meu pai, viajou até Belo Horizonte como acompanhante de C., uma das moças da casa onde vivia como agregado, em Dona Eusébia. Iam com um motorista conhecido, que ganhava a vida levando e trazendo pessoas e encomendas da capital mineira para o pequeno povoado, cerca de 290 quilômetros de estradas sinuosas e mal conservadas. O chofer deixou-os no Hospital Felício Rocho, onde a moça tinha uma consulta agendada, e combinou de pegá-los mais tarde.

C. entrou no consultório e deixou meu tio aguardando sentado no banco de madeira do salão de espera. Findo o atendimento, quarenta minutos depois, ele não estava mais lá. Preocupada, C. buscou-o pelos corredores do hospital, indagou em bares e restaurantes das imediações, sem sucesso. Ao retornar, o motorista achou-a em pânico. Refez, então, os passos da moça, especulando aqui e ali, sem avançar na investigação. Ninguém havia visto meu tio: era como se ele nunca tivesse pisado naquele lugar.

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A família de C. comunicou o sumiço a meu pai que, desesperado, tomou um ônibus em Cataguases e se instalou num hotel barato nas imediações da rodoviária de Belo Horizonte. A primeira providência, dar queixa na polícia, deixou-o frustrado. O delegado disse, com desdém, que talvez Arlindo estivesse somente entediado, logo logo reapareceria, e nem ouviu meu pai explicar que o irmão possuía um retardo mental e nunca conseguiria voltar para casa sozinho. Ainda assim, durante cinco dias meu pai frequentou o entorno do hospital, sem conseguir uma única pista capaz de deslindar o mistério.

Tio Arlindo fora criado por uma família de italianos que cultivava mudas de laranja e limão. Desde cedo, perceberam que ele não poderia assumir ocupação de grandes responsabilidades e então reservaram-no para a prestação de serviços domésticos: pajem das crianças, moço de recados, tomador de conta da horta e do viveiro, fazedor de mandados, acompanhante de doentes. De vez em quando percorria os 18 quilômetros que separa Dona Eusébia de Cataguases e surgia no terreiro da nossa casa, permanecia por dois ou três dias e sem aviso ia embora. O seu desaparecimento conduziu exaltadas discussões nos primeiros meses. Sem que percebêssemos, no entanto, pouco a pouco seu rosto ausentou-se das conversas. Um ano depois, Arlindo tornara-se apenas um nome alimentando a memória de um corpo insepulto.

Meu pai encontrou tio Arlindo amarrado numa cadeira no manicômio de Barbacena. 70% dos internos não tinham qualquer diagnóstico de doença mental

Estima-se que entre 40 e 50 mil pessoas desaparecem por ano no Brasil – não há estatísticas oficiais. Do total, 80% retornam às suas casas, mas o restante nunca mais são encontradas. Crianças e adolescentes somem, na maioria dos casos, por problemas familiares: vão para as ruas para fugir de maus tratos ou de abuso sexual. Adultos extraviam-se ou porque estão envolvidos com o consumo de drogas ilícitas ou porque têm problemas psiquiátricos. Uns poucos voluntariamente retiram-se do convívio de parentes e amigos sem motivo aparente.

Três anos após o desaparecimento, uma vizinha disse a meu pai que havia deparado com um homem muito parecido com Arlindo no hospício de Barbacena. Ele estranhou, já que a cidade dista 170 quilômetros de Belo Horizonte, onde meu tio havia sido visto pela última vez. Mas, os bolsos cheios de esperança, pegou um ônibus e para lá se dirigiu. Não encontrou o nome do irmão nos registros de entrada de pacientes, mas nem por isso deu-se por vencido. O próprio funcionário que o atendeu confessou não ser incomum a internação de indivíduos sem identidade e estimulou-o a entrar e procurar pelos pavilhões. O manicômio de Barbacena, fundado em 1903, tornou-se durante a maior parte do século XX o destino final de pessoas incômodas à sociedade: prostitutas, mendigos, homossexuais, revoltosos políticos, jovens indisciplinados, filhos bastardos, moças rebeldes, etc. Calcula-se que 70% dos internos não tinham qualquer diagnóstico de doença mental – 60 mil homens e mulheres morreram atrás de seus muros.

Meu pai passou o dia percorrendo os labirintos daquele inferno, convivendo com pacientes animalizados que, nus ou cobertos por um lençol, comiam o que achavam no chão, agrediam-se uns aos outros, caminhavam mortos-vivos pelos corredores e pátios. No final da tarde, quase desistindo, encontrou Arlindo amarrado numa cadeira, num quarto escuro e úmido, fedendo a fezes e urina. Meu tio viveu ainda 25 anos após esse episódio. Nunca conseguimos saber como ele havia ido parar em Barbacena. Continuou a chegar em nossa casa sem avisar e ir embora sem avisar. Meu pai não contou o que viu naquele dia no hospício de Barbacena e meu tio, até o fim, demonstrava pavor da cor branca – que remetia suas lembranças a médicos e enfermeiros – e da polícia. Um e outro nunca mais foram os mesmos.

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