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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Entender o presente sob os olhos do passado

Embalado por tantos anos pelo mito do crescimento econômico, o Brasil chegou ao século XXI sem perspectivas e sem bandeiras capazes de mobilizar a sociedade

Como a alma humana, os fenômenos políticos são frequentemente insondáveis. Mas boa parte das dificuldades que temos para compreender as questões políticas derivam de premissas equivocadas ou de excesso de racionalização. Na verdade, simplificar o que é complexo é tão prejudicial ao entendimento quanto complicar o que é simples. A justa medida é difícil de encontrar.

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Vivemos hoje no Brasil tempos em que o simples e o complexo nunca estiveram tão emaranhados. Questões complexas revelam-se, no fundo, somatório de problemas simples. Questões urgentes frequentemente são muitas vezes questões que não foram tratas a seu tempo. Problemas facilmente resolvíveis isoladamente revelam-se intratáveis quando considerados em conjunto.

A presente conjuntura brasileira é extremamente grave. Os problemas de hoje, sociais, econômicos, financeiros, problemas ligados à corrupção governamental, ao gigantismo do Estado, ao descompasso entre administrações municipais e estaduais e o governo federal não são novos. Acompanham-nos desde os tempos coloniais, desde a monarquia, passando pela República Velha e Estado novo, a redemocratização I, o regime militar e desembocaram agora na redemocratização II.

De certa forma, as coisas sempre foram assim. Hoje, porém, o país cresceu exponencialmente. Os problemas se tornaram gigantescos e as soluções ainda mais complexas. Demandam tempo, consistência operacional e perseverança. Demandam, sobretudo, sabedoria, legitimidade e honestidade de quem governa.

Lá pelo começo dos anos 60, tempos de severa inquietação no país entre as ameaças da direita e da esquerda, lembro-me de longas discussões com amigos em torno de gelados chopes no Bar Lagoa ou no saudoso Zepelim de Ipanema. Quem insistisse como eu em acentuar a prioridade de se cuidar da saúde e da educação era apontado como conservador. O importante não era isso, diziam meus companheiros mais " progressistas", mas sim acelerar o processo da revolução social. Pois não cuidamos da educação, nem da saúde, nem de tantas outras coisas, e a revolução social não veio.

E mais: a dependência do exterior que se pretendia superar mediante a industrialização da economia e a progressiva inserção da economia brasileira nas grandes correntes de comércio internacional acabou-se agravando. Salvo pequenas exceções, ainda vivemos sob o efeito da deterioração das relações de troca conceituada nos anos 60 pelos economistas da Comissão Econômica da América Latina, a CEPAL: os produtos industriais e de alta tecnologia estão sempre em alta e os produtos primários, agro-pecuários e minerais, em baixa.

Embalado por tantos anos pelo mito do crescimento econômico, o Brasil chegou ao século XXI sem perspectivas e, o que é mais grave, sem bandeiras capazes de mobilizar a sociedade. O modelo desenvolvimentista não deu certo e o modelo distributivista acha-se atolado.

Razão tinha Joaquim Manuel de Macedo, grande romancista, historiador e crítico ativo na segunda metade do século XIX. Seu livro “A Carteira de Meu Tio”, escrito em 1855, momento tido como o apogeu da monarquia, no auge da chamada “política de conciliação dos partidos”, pré-história do que hoje chamamos de fisiologismo da política brasileira, revela uma antevisão catastrófica do que viria a acontecer. “A fome é a maior das alavancas políticas,” diz Macedo pela boca do protagonista. E continua: “A razão da alta gritaria que levantam e do espalhafato que fazem aqueles que fazem da política o seu meio de vida, que quebram os degraus por onde sobem às primeiras posições oficiais [….] aqueles que de tempo em tempo mudam de princípios e de opinião, […] aqueles que como os papagaios, falam muito quando têm fome e calam-se logo que têm a barriga cheia […]”. E conclui, “a vida humana é uma burla mais ou menos prolongada, e o homem mais eminente, mais hábil e mais digno de gerar respeito é aquele que mais vezes engana os outros”.

Anos depois, entre 1867 e 1868, Macedo deu seguimento à trama de “A Carteira de Meu Tio” no livro "Memórias do Sobrinho do Meu Tio", no qual sintetiza sua visão: “Eis aí… a escola filosófica do governo: o esquecimento do passado, os gozos do presente, e o descuido e abandono do futuro”. ... "A mentira é a base da maior parte dos diplomas eleitorais... e portanto é a base da expressão da soberania nacional"... "O Brasil é um tio velho e rico, cercado, atropelado de sobrinhos que o devoram, que o reduzem à miséria e que se dizem patriotas, sem dúvida por que se consideram donos ou proprietários da Pátria."

Ao redigir este texto lembrei-me de um comentário que ouvi décadas atrás de um Ministro a respeito de cenas chocantes mostradas na imprensa, em particular a imagem de uma família atingida por severa seca no Nordeste exibindo seu alimento cotidiano: "calangos", como são conhecidos na região. Terno bem cortado, camisa feita sob medida, sapato italiano, unhas bem manicuradas e bem alimentado, indignava-se o então Ministro com a incompreensão da imprensa para com os fatos normais da vida no Sertão. "Calango bem cozidinho é até muito gostoso", comentava, com ar de quem evidentemente jamais havia tido que provar alimento tão repulsivo.

É hora de reler a crítica política de Macedo. Para rompermos com a engrenagem secular que tem-nos condenado a emaranhar problemas, a não persistir em ações renovadoras, em insistir na tese de que “é dando que se recebe”, precisamos entender o presente sob os olhos do passado. E sobretudo construir o nosso futuro com base em amplo e franco diálogo com uma sociedade cansada de promessas.

Sejamos realistas por uma vez em nossa História!

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