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O negócio de alimentar a humanidade

Os limites das terras de cultivo e da água disponível obrigam os governos e o setor alimentar a investirem em tecnologia para enfrentar a crescente demanda mundial

Thiago Ferrer Morini
Uma refinaria de açúcar em Cuba.
Uma refinaria de açúcar em Cuba.ALEXANDRE MENEGHINI (Reuters)

No dia 1º, em um terreno de dois milhões de metros quadrados nos arredores de Milão, abria-se ao público a Exposição Universal de 2015 com o tema “Alimentar o planeta, energia para a vida”. Nos pavilhões, uma ampla representação de empresas, organizações internacionais e 110 países exibirão durante seis meses o progresso da indústria da alimentação.

Enquanto isso, do lado de fora, os protestos nas ruas assinalavam as contradições do evento. A delegação que mais gastou em seu pavilhão da Expo de Milão (72 milhões de euros, ou 244 milhões de reais) foi a dos Emirados Árabes, um país em que a agricultura representa 0,8% do PIB e que importa a maioria dos mantimentos que consome. Mas a principal ironia de uma celebração global da boa alimentação é que, apesar de os seres humanos consumirem, em média, 2.868 calorias diárias, cerca de 800 milhões de pessoas sofrem desnutrição crônica. E apesar de a cifra ter se reduzido nos últimos 20 anos (segundo a FAO, agência alimentar das Nações Unidas, a porcentagem de pessoas atingidas pela fome caiu de 18,7% para 11,3%), a dimensão do problema continua enorme.

A alimentação no mundo se sustenta sobre as 570 milhões de fazendas que, segundo a FAO, existem no planeta. A imensa maioria (cerca de 80%) são pequenas explorações familiares, por isso o verdadeiro poder reside em seus maiores compradores: a indústria agroalimentar. É um setor grande (segundo um relatório do Bank of America Merrill Lynch, a indústria vale 2,3 trilhões de euros, uma cifra equivalente ao PIB do Brasil e a 3% da economia global), poderoso e longevo: as três maiores empresas do setor por receita (Nestlé, Archer-Daniels e Bunge) são centenárias. Em grande medida, a segurança alimentar do planeta no futuro dependerá do que essas grandes multinacionais fizerem hoje.

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Tradicionalmente, o setor agroalimentar foi um negócio familiar, mas a solidez da indústria atraiu investidores do mundo todo. Dois dos mais famosos, a norte-americana Berkshire Hathaway (com Warren Buffett à frente), e a brasileira 3G Capital, coordenaram-se nos últimos anos em megaoperações de concentração. Em 2013, uniram-se para comprar a Heinz, famosa por seus molhos e enlatados, em uma aquisição de 28 bilhões de dólares (86 bilhões de reais). Em março deste ano, voltaram a se juntar para adquirir a Kraft Foods, outra fusão bilionária.

Não é um caso isolado. Em 2013 o mercado global de carnes viveu duas macrofusões: a compra da Hillshire pela Tyson Foods em 2013 (uma operação de 8,55 bilhões de dólares) e a da britânica Smithfields pela chinesa Shuanghui, por mais de 7 bilhões, uma operação que incluiu, em parte, a espanhola Campofrío.

Esse processo de concentração preocupa as organizações não governamentais especializadas em alimentação. “O setor está em muito poucas mãos, dos insumos até a distribuição, passando pelas grandes comercializadoras de grãos”, explica Lourdes Benavides, responsável por segurança alimentar da Oxfam Intermón. “Isso lhes dá um grande poder ao longo da cadeia, tanto de fixação de preços, como de controle de reservas, sem falar de sua influência na tomada de decisões políticas”.

Os grandes investidores buscam no setor agroalimentar um negócio sem sobressaltos, mas o futuro da indústria tem enormes e dispendiosos desafios pela frente. Segundo a FAO, dar de comer aos 9,6 bilhões de seres humanos que habitarão o planeta em 2050 necessita investimentos de 83 bilhões de dólares por ano. E, em sua maior parte, terão de vir do caixa das empresas. “Já não concebemos alcançar qualquer meta sem o setor privado”, diz Marcela Villarreal, diretora de Associações da FAO. “É o que mais mudou de papel. No passado o considerávamos um financiador. Hoje é um ator a mais. Estamos fazendo um chamado para que não só se comporte de forma responsável, mas também contribua para as metas de maneira mensurável, com instrumentos e guias”.

E quais são os desafios? Para começar, terra e água. Só 11% da superfície terrestre do mundo é cultivável, mas isso é mais que suficiente para alimentar a toda a Humanidade. De fato, um estudo patrocinado pela Fundação Rockefeller dá por superado o peak farmland: o ponto em que mais terra foi necessária para alimentar o mundo. A desaceleração do crescimento da população e a melhora da produtividade farão essa cifra diminuir. Mas o problema é que este último dado só se confirmará se os hábitos de consumo se mantiverem como agora. E não é assim. Segundo a FAO, até 2050, a terra cultivável deverá crescer 70% para abastecer todo o mundo. Em 1961, havia 2,5 hectares de terra cultivável por habitante e em 2050 haverá menos de 0,8. Ao mesmo tempo, é preciso um incremento de 64 bilhões de metros cúbicos de água doce por ano para adequar a produção agroalimentar à demanda.

Um futuro já por si complicado que se agrava quando se inclui a mudança climática na equação. O efeito é especialmente notável nas regiões tropicais e equatoriais. Na Ásia, onde a implantação de sistemas de irrigação permitiu um grande aumento da produtividade, a maior instabilidade do clima pode pôr a perder os lucros obtidos. Em alguns países africanos, a rentabilidade agrícola pode cair em 50%.

Os problemas derivados da mudança climática logo se estendem a toda a economia. “Em 2010 e 2011, os anos prévios à Primavera Árabe, houve uma grave seca em todo o norte da África: Tunísia, Líbia, Egito”, recorda Kanayo F. Nwanze, presidente do IFAD, o braço financiador da FAO. “O preço do pão subiu, as pessoas tiveram de emigrar para cidades já saturadas… A mudança climática traz crise, traz instabilidade”.

A mudança climática traz mais dificuldades para o setor, sobretudo nos trópicos

Quais são as possibilidades de negócio nesse novo mundo? O interesse de várias instituições ou inclusive de Governos, como o da Coreia do Sul, em adquirir terras de cultivo em vários países africanos despertou muita polêmica, embora a realidade esteja se mostrando um tanto diferente: “Estamos há vários anos fazendo um acompanhamento e é difícil quantificar quanto existe em realidade, se está crescendo ou se estabilizou”, comenta Benavides. “Mas continua aí e continua regulando bastante mal. Muitas terras nem sequer são colocadas para cultivo, por isso os agricultores locais não têm acesso”.

O negócio e o futuro da produção alimentar, segundo os analistas, está nas soluções tecnológicas. “Em inglês chamamos isso de more crop per drop: mais colheitas por cada gota de água”, diz Sarbjit Nahal, estrategista do Bank of America Merrill Lynch. “Há oportunidades de negócio em tratamento, gestão, infraestrutura e fornecimento de água, assim como em sementes e produtos agrícolas tolerantes a seca, agricultura de precisão”.

Grandes empresas do setor já estão trabalhando nisso. “Os produtos para a proteção das plantas estão indo além dos fitossanitários”, comenta Carlos Vicente, diretor de Sustentabilidade da Monsanto para a Europa. “Há produtos desenvolvidos a partir de mecanismos que já se encontram na natureza, como produtos microbianos que ajudam a controlar pragas e potencializar o rendimento, ou o ARN de interferência, que são instruções que fazem que pragas, ervas daninhas ou inclusive parasitas de insetos benéficos, como as abelhas, não provoquem o dano que são capazes de provocar”.

As possibilidades tecnológicas já existem. “A irrigação por aspersão utiliza muito menos água que a inundação”, explica o tecnólogo Ramez Naan em uma entrevista ao projeto Future Foods 2050, organizado pelo Instituto de Tecnologia dos Alimentos (ITF). “Embora seja uma mudança simples como regar de noite, quando há menos possibilidades de perdas por evaporação”. “Em muitos casos, quem decide o que regar e quando é o agricultor, que na maior parte das vezes é o proprietário do imóvel”, explica Juan Carlos Jiménez, sócio fundador da IG4 Agronomia, uma empresa da Huelva dedicada a aplicar as novas tecnologias à irrigação. E seu critério é por aproximação e observação: agora 20 minutos, agora tantas horas. “O que nós fazemos ir à raiz, onde se vê o que acontece com cada planta. Medir a umidade, a temperatura, ver se está sendo usada a quantidade adequada de água e fertilizante”.

Também o setor do maquinário agrícola está fazendo avanços. “Todas as empresas estão trabalhando para que haja equipes mais inteligentes, tratores que possam medir o que acontece com a planta sobre a qual passam”, diz Ulrich Adam, presidente da entidade empresarial europeia CEMA. “Mesmo nos países desenvolvidos, onde a produtividade não pode crescer muito mais, está sendo obtida uma melhora de 3% a 4% na produtividade, o que é realmente bonito, com muito menos água e fertilizantes.” Segundo o Bank of America Merrill Lynch, o mercado de equipamentos agrícolas passará de 130 bilhões de dólares (400 bilhões de reais) em 2013 para mais de 208 bilhões (643 bilhões) em 2018, uma elevação de 60% em apenas cinco anos. Só o mercado de drones (aviões não tripulados) para uso agrícola já é estimado em 2 bilhões de dólares.Para a maior parte dos analistas, o aumento da produtividade passa por um uso mais intensivo da tecnologia. O desafio é levá-la aos mercados emergentes e aos pequenos agricultores. “Grande parte da agricultura feita na África é à base da enxada”, comenta Villarreal. “Isso não só é muito pouco produtivo como também é nocivo: deixa aos agricultores com as costas dobradas”. As organizações internacionais apostam na criação de cooperativas e associações de pequenos produtores rurais para obter a economia de escala necessária à mecanização. “É preciso organizar os agricultores”, defende Nwanze. “Há iniciativas muito boas que estão sendo realizadas na África, como juntar 20, 30, 40 agricultores para que possam comprar um trator”, exemplifica Villareal. “E é um bom negócio para todos: para quem compra o trator e para quem vende.” Adam, da CEMA, diz que “as novas tecnologias são caras porque exigem um investimento de capital, mas o que aconteceu na telefonia celular, que entrou muito forte no campo e agora tem uma presença enorme, pode acontecer com outras tecnologias. A revolução digital pode tornar a agricultura menos dependente de capital intensivo do que é agora”.A tecnologia também será indispensável quando a indústria agroalimentar precisar enfrentar uma mudança no paradigma energético. O drástico aumento da produção de hidrocarbonetos por causa de uma técnica de extração de gás e petróleo chamada faturamento hídrico reduziu as pressões econômicas sobre os agricultores, mas as metas oficiais de redução das emissões de gases do efeito estufa e o barateamento das energias alternativas imporiam uma mudança dramática no setor.A expansão do mercado de biocombustíveis foi apontada como responsável pela crescente demanda por terras em nível global, mas ela tem pouca influência se comparada ao aumento descontrolado do consumo de carne. Cerca de 60% do aumento da produção de alimentos até 2025 será na forma de ração animal. Na maioria de países emergentes, o consumo de carne é um símbolo de modernidade e status: o sinal de que se chegou à classe média. “Mas, se toda a humanidade comesse carne como no Ocidente, não haveria planeta suficiente”, aponta Villarreal.

Entretanto, o desafio tecnológico mais sério talvez seja o de transportar e armazenar os alimentos. Um estudo patrocinado pela FAO estima que, na América do Norte e Oceania, até 60% das raízes e tubérculos se perdem no caminho do campo ao consumidor. No norte e centro da África, o desperdício de frutas chega a 55%. “Quando se viaja pela Colômbia, vemos lindas mangas atiradas no chão”, comenta Villarreal. Para desenvolver redes de transporte e cadeias de frio é necessário investir muito dinheiro. Mas essa não é a única solução possível. “Quanto mais próximas das áreas de consumo, mais eficientes e menos custosas são as produções”, reflete Carlos Vicente. “Talvez a solução seja que os agricultores devam abastecer as populações em suas zonas de origem”, acrescenta.

A alimentação no planeta é sustentada por 570 milhões de fazendas

Tecnologias como a de fazendas urbanas poderiam impulsionar esse movimento, mas, para Adam, trata-se acima de tudo de uma questão de hábitos de consumo. “No mundo desenvolvido, a maior parte das perdas ocorre em nossos frigoríficos e durante a distribuição”, diz. “Muitas frutas e verduras, sobretudo, são jogadas fora porque não atendem aos critérios de qualidade exigidos pelos consumidores. A tecnologia pode ajudar a produzir frutas mais bonitas, mas também possivelmente seja uma questão de educar o consumidor para que não queira uma comida perfeita a todo momento.”

A qualidade dos alimentos também preocupa os consumidores, tanto nos países tradicionalmente industrializados como nos emergentes. Em 2008, uma epidemia de doenças renais começou a afetar milhares de bebês na China. Logo se descobriu que a culpa era de um lote de leite infantil adulterado com melamina, uma cola industrial. Foi primeira de várias crises alimentares de grande repercussão no país asiático. Outras, como a da vaca louca na Europa e América do Norte, puseram a indústria em xeque e obrigaram-na a redobrar seus esforços para garantir a segurança dos produtos que vende.

Por outro lado, os consumidores procuram cada vez mais variedade, cada vez mais saúde e cada vez mais autenticidade nos produtos que consomem. E o setor responde. “Hoje em dia, duas em cada três companhias da indústria alimentícia se dedicam de forma permanente a algum tipo de inovação”, diz a entidade patronal FoodDrinkEurope, que faz lobby junto às instituições europeias em Bruxelas. “Metade dos produtos que vemos nos supermercados hoje não estarão nas gôndolas dentro de cinco anos.” “Os mercados são muito sensíveis aos temas ambientais”, comenta Jiménez. “Cada vez se busca mais o rastro da água, se houve um uso respeitoso da água na produção”, exemplifica.

Agricultura de precisão abre espaço como uma alternativa muito viável

A mudança nas preferências do consumidor também fomentou o crescimento de pequenas empresas, fora dos grandes grupos empresariais, especializadas em produtos muito específicos criados com padrões dificílimos de alcançar na produção em massa. “Nunca foram criadas tantas empresas emergentes na indústria alimentícia como agora”, diz Michael Boland, professor da Universidade de Minnesota e especialista na evolução do setor agroalimentar. “Há muitas rupturas com o passado atualmente.”

“O investimento do setor empresarial em desenvolvimento agrícola é de até 75% do seu total”, afirma Nahal. Isso vale a pena do ponto de vista econômico? “O investimento em pesquisa e desenvolvimento agrícola continua sendo um dos mais produtivos atualmente”, afirma. “Oferece taxas de retorno de 30 a 75%.” Para efeito de comparação, um estudo com mais de 200 projetos de irrigação do Banco Mundial entre 1960 e 1995 estima a taxa de retorno em 15%.

Para os países, há um incentivo adicional: eliminar a fome não é só um imperativo moral, mas também algo que faz sentido do ponto de vista econômico. O Bank of America Merrill Lynch calcula que a fome tenha um efeito equivalente a 6,8 trilhões de reais sobre a economia global, o que é quase o peso do setor alimentício inteiro. É riqueza demais para desperdiçar.

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