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Coluna
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Carta à mãe ou o Brasil que ‘desmelhora’

Lembro quando falei o preço de um prato de baião-de-dois em São Paulo nos anos 1990. O problema de hoje, mãe, é a gourmetização

Mãe, venho por meio desta dar-te as minhas notícias e ao mesmo tempo saber das tuas. Por carta mesmo, a maneira mais decente que já inventaram para declarar ou reafirmar um amor antigo e derramado —não esse amorzinho econômico à mercê de minguados caracteres e sujeito aos ajustes fiscais contemporâneos. Ê mundão grande de amores tão pequenos.

Mais cartas de amor, faz favor, ô mr. Postman. Carta selada com a saliva de uma saudade transatlântica, aquela saudade inventada por Camões para fazer girar a lusitana roda. Cartas como devem ser todas as cartas, ridículas e à maneira de Fernando Pessoa e outras desassossegadas criaturas que não temem o flerte com o fado, o brega, o bolero e o delito por dançar um cha-cha-cha além de todas as crenças.

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Mãe, já que te queixas de um certo isolamento depois das modernagens como o WhatsApp, recorro a estas mal traçadas linhas, como fazia no exílio inicial do Recife, léguas e léguas tiranas do colo, dos cafunés e do coração materno. Estás certa quando diz, estranhando a Internet, que “tudo ficou mais perto para os mais novos e mais longe para os mais velhos”. Pouco se fala ao telefone, estás certíssima. Retomemos, pois, nossa correspondência.

Não, mãe, não te assombrarei com a carestia, teu assunto preferido desde aquela inflaçãozona de 80% de outrora. Muito menos com o desemprego que parecia alguns países da Europa atual, sempre acima dos 25%. Lembro quando falei o preço de um prato de baião-de-dois em São Paulo nos anos 1990. Quase mato a senhora. O problema de hoje, mãe, é a gourmetização. Agora imagino teu riso de espanto; “Que diabé-isso, meu filho?!”

Sim, mãe, gourmetizaram até a moela, o mais sagrado dos tira-gostos de boteco. Tem sempre algum chef para meter um molhinho agridoce ou outra frescura qualquer na comida de sustança, na verdadeira cozinha do macho-jurubeba, como fomos criados aí em casa, graças a Deus, dona Maria do Socorro.

Tudo bem, não resisto à carestia deste raio gourmetizador. Está sentada, mãe? Sente, tome uma garapa, um copo de água com açúcar. Sabe quanto pode custar uma tapioca no Rio de Janeiro? Até R$ 20, dependendo do recheio. E não estamos falando de lugares de luxo, esses templos da ostentação onde o arroto do dia seguinte já vem com três dígitos. Nada disso. Tratamos de uma normalíssima casa de sucos.

Falar em recheio, é bom que se diga, a tapioca foi uma das primeiras vítimas fatais da gourmetização. Tapioca lá para nós era com manteiga, queijo de coalho, coco, no máximo. Agora virou pizza. Botam de tudo na pobre e caliente branquinha. Nada escapa ao raio que o parta o maldito gourmet, mãe.

Pelo menos a buchada de bode, “buchadá de bodê”, na pronúncia afrancesada do príncipe FHC durante a campanha eleitoral, está a salvo. Conferi outro dia na Feira de São Cristóvão. No dia em que mexerem nessa iguaria, os cavaleiros do Apocalipse, na terceira visão do apóstolo João, põem essa terra definitivamente em transe. Deus nos livre e guarde.

Falar em comida, mãe, bateram panela no Cariri? Aqui na zona sul carioca foi uma festa, barulheira dos seiscentos diabos, como a gente diz por ai. Foi Lula aparecer no programa do PT e dá-lhe batuque, em um desafinado samba-funk dos descontentes.

Não, mãe, né coisa de madame desocupada não, como imagino na tua voz. Né frescura não —gourmetização é outra coisa, não confunda. Todo protesto é legítimo, calma. Sei que a senhora testemunhou muitos saques na era do Nordeste pré-Lula, aquelas hordas de famintos, aquela imagem triste dos fogões a lenha e encarvoadas panelas vazias sob cinzas de tresantontem... Vida em tintas de Goya, por supuesto.

Aqueles meninos famintos puxando o vestido ou a saia da mãe, um puxão e um fiapo de choro capazes de legendar toda a necessidade histórica da humanidade.

Adeus, tristeza

Não falemos de coisas tristes, mãe. Não está um paraíso, as coisas têm “desmelhorado” muito, para usar o teu verbo mais otimista: dona Dilma terceirizou seu regime para todo o país, a festa acabou, é o que dizem... É, dona Maria do Socorro, o Brasil desmelhorou demais, mas isso já vês no noticiário apocalíptico, falemos de outras coisas...

O Brasil desmelhorou tanto que o colega William Bonner agora não ganha a vida mais sentado, tem que ficar andando de um canto para o outro do cenário do “JN”, parece o Tetê-Segura-o-Bode do Mercado Municipal de Juazeiro do Norte, aquele doido genial que merece um romance.

Mesmo sabendo que aquilo que desmelhora também piora, falemos de coisas mais alegres, mãe. Hoje mesmo fiquei lembrando da nave espacial norte-americana Skylab. Acreditava piamente que ela iria cair ali pertinho da nossa casa, no Sítio das Cobras, em Santana do Cariri (CE), ano de 1973. Sonhei noites e noites com o acontecimento. Nada. Hoje vem ai ladeira sideral abaixo a nave russa Progres. Viajei no tempo.

Esse lenga-lenga todo tipo David Copperfield, só para dizer te amo. Não importa realidade ou delírio. Agora me vejo na noite profunda, no quarto colado na bodega, escuto as vozes dos derradeiros bêbados da vizinhança em comoventes despedidas com meu pai. Tu passavas para vigiar nossos sonhos entre os punhos das redes em que dormíamos. Tu dizias umas orações incompreensíveis na língua das mães. Depois ouvia teu sopro forte para apagar o fogo do candeeiro. Só depois desse sopro a favor da escuridão eu dormiria em paz.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (ed. Companhia das Letras), um livro com suas memórias delirantes de infância.

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