“No mar, entre os corpos, alguém desesperado agitava os braços”
EL PAÍS acompanha um avião militar italiano em sua busca de imigrantes náufragos
Foi uma emergência. Uma situação extraordinária que não costuma acontecer, mas que é previsível. Dez horas depois do naufrágio de domingo no Canal da Sicília, no qual perderam a vida mais de 800 pessoas, os oito tripulantes do avião de vigilância ATR-42 da Guardia di Finanza italiana, a polícia aduaneira desse país, tiveram de tomar uma decisão de vida ou morte. Literalmente. Descer a um ponto muito baixo, abrir a porta do avião e lançar ao mar uma das três balsas infláveis que carregam para essas contingências.
“Estávamos sobrevoando a zona do naufrágio quando, graças às câmeras do avião, vimos alguns corpos flutuando entre fragmentos do pesqueiro e sacolas de plástico”, explica o comandante desse voo, Michele Cucit, ainda com a voz trêmula. “No meio do desastre, entre os cadáveres, vimos duas vezes uma pessoa que agitava desesperada os braços na água. Na mesma hora tentamos localizar a lancha-patrulha mais próxima, mas estava muito longe e essa pessoa estava nas últimas, depois de passar horas no mar.”
“Tomamos a decisão de lançar uma das três balsas infláveis de salvamento”, prossegue o comandante. “Era uma manobra extraordinária que envolve toda a tripulação. Gritávamos no rádio ‘há uma pessoa viva, há uma pessoa viva!’. A emoção de conseguir o milagre de salvar alguém 10 horas depois do afundamento nos lançou a adrenalina nas nuvens. Justo depois de lançar a balsa ficamos todos olhando pela janela para ver como ela se inflava”, acrescenta. “Em dois minutos a patrulha da Guardia de Finanza que havíamos contatado chegou até a balsa. Nós desmoronamos quando nos disseram que dentro não havia ninguém.”
Transcorreu uma semana desde esse resgate. As turboélices desse mesmo ATR-42 sulcam novamente o céu do Mediterrâneo. O avião militar, de 24 metros de envergadura e outros 22 de comprimento, é capaz de ver com suas câmeras tudo o que ocorre sem ser visto nem escutado. Se alguém coça a cabeça lá embaixo, os oito tripulantes do voo saberão. Poderão gravar isso com suas câmeras desde cima, a 4.000 pés de altura.
Uma mancha negra aparece no radar. A atividade a bordo se torna estressante. Os três operadores de sistemas do avião, o subtenente Pisano, o lugar-tenente Puglisi e o tenente-brigadeiro Magale, sabem que de sua perícia pode depender a vida de centenas de imigrantes que se arriscam em pequenos barcos quando chega a primavera.
Da parte traseira do avião, com seus binóculos colados a uma janela de forma esférica que lhe permite 180 graus de visão, o tenente-brigadeiro Meir grita para seus companheiros que localizou um barco à direita do avião. “Objetivo fixado. Passo as coordenadas!”, avisa Pisano aos comandos do radar. Puglisi dirige as câmeras para essa posição. Em poucos segundos é possível ver as gaivotas que sobrevoam a embarcação. Pode-se até ler a matrícula. Falso alarme. É um pesqueiro tunisiano. Há dois dias, no entanto, avistaram um bote inflável com uma centena de pessoas a 36 quilômetros das praias de Trípoli, a capital líbia. Todas puderam ser resgatadas e levadas para terra.
A Guardia di Finanza italiana usa esse avião para procurar barcos carregados com drogas. Mas agora, com a explosão da crise migratória na Itália, que levou 200.000 imigrantes irregulares às suas costas nos últimos 15 meses – mais do que os que chegaram à Espanha nos últimos 20 anos –, essa corporação militar empenha grande parte de seus meios, ombro a ombro com a guarda Costeira e a Marinha, na cooperação no salvamento de velhos pesqueiros desengonçados e lanchas pneumáticas que quase todos os dias tentam alcançar a Europa nesse ponto.
Operação Tritão
É o dispositivo europeu de vigilância do Canal da Sicília, coordenado pela Frontex, a agência europeia de fronteiras. Bruxelas triplicou seu orçamento inicial, de 3 milhões de euros por mês (9,5 milhões de reais).
À operação se uniram 20 Estados da UE, Islândia e Suíça.
Nos últimos 15 meses chegaram às costas italianas 200.000 estrangeiros; mais do que em 20 anos nas costas espanholas.
O avião forma agora parte da Operação Tritão, o dispositivo europeu de vigilância no Canal da Sicília, coordenado pela agência europeia de fronteiras, Frontex, cujo orçamento inicial, de 3 milhões de euros por mês (9,5 milhões de reais), foi triplicado por Bruxelas na semana passada. À operação conjunta de patrulhamento do Mediterrâneo central se somaram 20 Estados da União Europeia, a Islândia e a Suíça, que aportam navios, lanchas-patrulha, aviões e pessoal. Em um dos pontos mais quentes da região, a ilha de Lampedusa (219 quilômetros ao sul de Agrigento, na Sicília, e 296 quilômetros ao norte de Trípoli), a Guardia di Finanza tem destacadas três lanchas-patrulhas, um helicóptero e o ATR-42.
O serviço do avião é vigiar. Ver sem ser visto. “O mais importante é que os imigrantes não os detectem para evitar que, em seu desespero, fiquem nervosos e caiam na água ou façam com que o barco vire, como aconteceu naquele dia”, explica o lugar-tenente Puglisi. “Graças à câmara de longo alcance do avião e à altura em que voamos, 4.000 pés (1.200 metros), podemos visualizá-los perfeitamente a uma distância de mais de 20 quilômetros sem que eles nos vejam. Quando os localizamos damos imediatamente suas coordenadas à nossa sala de operações em Roma, que se encarrega de mobilizar os barcos que se encontram na área. São os guarda-costas, a Marinha militar ou as lanchas-patrulha da Guardia di Finanza que os socorrem ali embaixo”.
O voo de hoje percorreu a costa perto de Trípoli e a leste de Túnis, mas, apesar da intensidade do trabalho, não localizou nenhuma barcaça de imigrantes. Entre os cerca de 200 alvos apontados no mapa por Pisano, a maioria se constitui de pesqueiros italianos e tunisianos que trafegam em apuros por causa do mar agitado. Viram também alguns dos navios mercantes que passavam e uma embarcação militar que participa da operação de salvamento. Três horas depois da partida, com as ilhas Kerkenah à esquerda do avião, o comandante Santillo dá por finalizada a missão e toma o rumo do aeroporto de Lampedusa.
A crise migratória levou para a Itália 200.000 imigrantes em 15 meses
Os relatórios que o tenente Nicola Picerno recebe várias vezes ao dia em seu escritório do porto dessa ilha, de apenas 20 quilômetros quadrados, uma quarta parte de Formentera, indicam que as saídas a partir da Líbia se reduziram nos últimos dias. “O mar está muito instável, por isso desde quarta-feira não foram mobilizadas nenhuma das três lanchas-patrulha que temos atracadas no porto para participar dos serviços de resgate”, explica o principal responsável da Guardia di Finanza em Lampedusa.
As previsões meteorológicas indicam que o vento amainará a partir da quarta-feira e o mar voltará a ficar como um platô. Nessas condições, segundo a tripulação do avião, o avistamento de imigrantes é quase diário. Amanhã o ATR-42 voltará a partir em direção às costas da África. Nos últimos meses, o trabalho desses captores de traficantes transformados em salvadores de náufragos não tem fim.
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